Eloá de Azevedo Caixeta Murucci
São Paulo / SP

 

 

Fantasmas do ciúme

 

           

Maria era a senhora mais simpática da vila. Viúva havia um tempo, investia toda a sua energia de idosa em conquistar o partidão do bairro, o senhor Joãozinho. Todo dia, ela saía para dar uma volta pela vila, toda perfumada, maquiada, arriscando até a passar um batom cor de rosa.
Quando via Joãozinho, sentia um alvoroço de menina nova e logo começava a se abanar.  Mariazinha morava sozinha e queria muito uma companhia masculina. Tinha sonhos quentes e acordava febril, chamando por Joãozinho. No entanto, nesses sonhos, sempre tinha a imagem do falecido com os olhos de reprovação bem em cima dela, observando tudo que fazia.
Ela e Joãozinho trocavam olhares há muito tempo e estavam começando a se conhecer melhor. Em suas caminhadas matinais, sempre ficavam muito tempo conversando e contanto sobre as suas vidas já muito vividas. Papos sobre doenças, dores e remédios quase não eram falados. 
A hora do dia que João mais gostava, certamente, era a manhã. Acordava bem cedo para pegar sol e dar aquela coradinha. Comia bem e se exercitava todos os dias, tudo conforme orientado pelo seu médico.
Joãozinho gostava das conversas com Maria porque ela o fazia esquecer da tremedeira e da osteoporose, e também porque ela o fazia rir como se ainda fossem jovens.
Sua filha, Vandinha, dormia semanalmente na casa do pai, dando-lhe os remédios que o velho se recusava a tomar por pura teimosia, ou não. 
- Toma, papai – disse Vandinha, enfiando goela abaixo o remédio no pai.
- Você está me matando, não quero esses remédios, não preciso disso! – disse João, engasgando em meio a remédios, goles de água e muita relutância.
Um belo dia, dona Maria foi até a casa de Joãozinho num horário em que a filha não estava para perguntar o porquê de ele não ter feito sua caminhada naquele dia.
- Bom dia, seu Joãozinho! Como o senhor está se sentindo? – perguntou Maria.
- Não tô bem não, minha filha quer me matar – disse, simplesmente.
- O QUÊ? – Dona Maria deu um salto e soltou um grito agudo de espanto.
- Isso mesmo, Mariazinha... e a senhora precisa me ajudar a fugir daqui.
- Mas ela te prende aqui nessa casa?
- Sim, quando ela vem, ela me amarra na cama e não me deixa sair. Só faz me entupir de remédio e me deixar dopado.
- Que absurdo! Olha, farei tudo o que quiser, conte comigo. Não quero nem tentar conversar com ela, quero apenas te ajudar!
- Ótimo. Hoje à noite, pode ser?
- Pode. Estarei aqui.
Maria passou o dia todo muito ansiosa, roendo as unhas e imaginando o que João iria propor a ela como ajuda. Será que deveria ter tido mais cautela? Será que deveria se envolver? Como seria a fuga dele? Viveria longe de Joãozinho ou fugiria com ele?
Deu o horário e Maria tratou logo de ir para casa dele. Bateu duas vezes na porta e nada. Achou estranho, pois o carro de sua filha estava parado bem na porta da casa.
Bateu novamente, dessa vez mais forte e mais insistente. Nada. Tocou na maçaneta e percebeu a porta destrancada. Assim que a abriu, se deparou com Vandinha estirada no chão, cheia de sangue na cabeça. Ao seu lado estava Joãozinho, sentado, acariciando o rosto da filha.
- João, o que você fez? Valha-me Deus!
- Eu queria sair da cama de qualquer jeito e ela não deixava... quando ela saiu do quarto, consegui me soltar e agarrar a jarra de água para me proteger caso ela voltasse. Assim que voltou, ela ficou possessa ao me ver solto e veio para cima de mim! Para me proteger, dei-lhe com a jarra bem na cabeça. E pronto. Agora está morta e eu estou livre.
- Livre? Como você acha que escapará desse crime absurdo? Como foi capaz de matar a sua própria filha?
- Eu não matei a minha filha. Você matou – disse João com os olhos fincados nos de Maria.
- EU? Eu acabei de chegar aqui! Eu não matei ninguém!
- Você não faria isso por mim? Onde está o amor que sentia por mim? E nossas caminhadas, conversas, risadas? Não valem de nada?
Maria ficou em choque e chegou até a pensar que Joãozinho a conquistara para ter uma cúmplice, não um amor.
Enquanto Maria, atordoada, tentava sair da casa, João agarrou-a pela cintura, enfiou em suas mãos a jarra ensanguentada e a jogou em cima do corpo de Vandinha. Com o baque, acabou desfalecendo.
Quando acordou, estava presa. Desesperada, chamou o carcerário e disse que havia um engano, que não matara ninguém. Tudo em vão.
Sentiu algo no bolso e, quando foi ver o que era, viu-se olhando para um bilhete escrito à mão que dizia o seguinte: “Obrigado, minha Mariazinha, por ter prometido fazer de tudo para me ajudar. Serei eternamente grato a você e ao seu amor." A assinatura era de Joãozinho.
Nesse instante, Maria acordou assustada, toda suada, ofegante e trêmula. Olhou para os lados e percebeu que havia sonhado. Sentou-se na cama agradecendo por tudo ter sido apenas um sonho. 
Quando saiu de casa para mais uma voltinha matinal, depois de se recuperar da noite agitada, encontrou com João. Um misto de surpresa e medo veio à tona. Não houve retribuição ao aceno de mão e muito menos o beijinho no rosto. Joãozinho olhou para Maria sem entender nada e teve a infeliz ideia de perguntar: "Dormiu bem?!" Maria arregalou os olhos e foi correndo para casa.
Chegando lá, acendeu uma vela para o defunto e mandou rezar uma missa para que ele parasse de atormentá-la com sonhos horríveis. “Defunto apegado, me deixa viver em paz! ”, pensou Mariazinha antes de tirar a foto do marido da parede da sala de jantar.
Nesse dia, Mariazinha dormiu muitíssimo bem, mas não sonhou. Não sonhou porque tinha, finalmente, Joãozinho ao seu lado beijando-a, amando-a e a fazendo sentir como se tivesse 20 anos de idade. Ela acabou cedendo aos encantos do velho, superando o pesadelo.
Pela manhã, quando ainda estavam despertando, batidas fortes na porta ecoavam pela casa inteira, alertando-os.
- Mas quem será tão cedo? – perguntou Mariazinha preocupada.
- Deve ser o entregador de pão – respondeu Joãozinho.
Maria foi até a porta e, quando a abriu, deparou-se com dezenas de policiais.
- O que aconteceu, policiais? – perguntou assustada.
- O senhor João Augusto se encontra? – responderam bruscamente.
- Sim. Mas o que houve?
- Vá chama-lo, por favor!
Enquanto o policial insistia para que Maria fosse chamar João, ouviu-se um estrondo na cozinha. Os policiais escutaram e correram até lá, mas o estrago já tinha sido feito. Joãozinho quebrou a janela e fugiu. Os policiais até tentaram capturá-lo, mas já era tarde demais. Velho ligeiro.
Maria, visivelmente abalada, foi amparada pelos policiais antes de desmaiar.
Quando acordou, vários olhos ansiosos a olhavam e ofereciam água. Quando recuperou a consciência, finalmente perguntou:
- Podem me falar agora que raios aconteceu?
- A Vanda, filha de Joãozinho, foi encontrada morta hoje cedo, na casa dele.
- Meu Deus, coitada! Mas o que ele tem a ver com a morte dela?
- Ele é o principal suspeito. Uma jarra foi encontrada ao lado do corpo dela.
Nesse momento, a imagem do falecido veio em sua cabeça com o olhar de quem fala: “Eu avisei”.      
Maria, gelada por dentro, pediu para que todo mundo se retirasse, pois precisava digerir tudo aquilo. Assim que saíram, pegou a imagem de Gerônimo, o falecido, e a colocou de volta na parede junto com uma vela perfumada, jurando fidelidade até que se encontrassem no céu ou no inferno, novamente.

 

 
 
Poema publicado no livro "7 Pecados Capitais"- Edição Especial - Abril de 2017