Adriano de Jesus Santos
Guarapari / ES

 

 

História de Tomaz

 

           

         

Essa história começa pelo final. Começa a partir de uma cidade marcada pelo silêncio que parece eterno e onde cada um possui um pedaço de terra determinado, ninguém com mais e nem com menos; Por um lugar que ainda que cause temor em alguns e calafrios em outros, é destino certo para a maioria dos seres humanos viventes ainda que não tenham a oportunidade de passar por uma cerimônia fúnebre digna de todas as virtudes demonstradas a quem estavam a sua volta;  por um túmulo bem lá no canto, em um espaço destinado aos indigentes, lá jaz Tomaz, lápide número 987.
Morava na Vila dos Bentos, distante dali milhares de quilômetros. Bem lá longe para onde um passeio demandaria muito planejamento e destemor. Tomáz não tinha amigos e nem vizinhos e a referida vila era apenas o restante de um conjunto de casas arrasadas pela maior enchente da história do Rio Juriri. Escondeu-se das equipes de resgate e viveu em meio aos destroços por alguns meses antes de se embrenhar por aquela floresta densa. Ali ele esteve à beira da morte, mas depois de três semanas, no fim encontrou uma rodovia e contando com a benevolência de um caminhoneiro chegou até a cidade mais próxima.
Tomaz iniciou sua vida peregrina. Sem eira e nem beira cruzou estradas dias e noites. De carona em boleia de caminhão ou em carrocerias sem o mínimo de proteção sequer. Entregue ao sabor do vento como uma pipa descontrolada que não sendo encontrada, fica à espera de um desfecho para uma existência sem propósito.
Não parava em uma cidade não mais que alguns dias e por diversas vezes andava pelas rodovias todo maltrapilho procurando não sabia o quê. Foi deitado à sombra de uma árvore que em raríssimos momentos de diálogo, ele contou sua história a Seu Antônio, dono daquela propriedade que ao invés de reprimi-lo, mostrou-se interessado no assunto. Com uma barba espessa e um olhar penetrado no infinito do horizonte, ele foi narrando trechos de sua história antes, durante e depois da enchente do Juriri. Trechos em quebra-cabeça cuja montagem exigiu um esforço quase que sobrehumano.
Falava de sua vida às margens do Juriri como se estivesse no mundo onde tudo funcionava de acordo com as necessidades de seus moradores. Falava da sua vida peregrina como algo inacessível a sua capacidade intelectual a tal ponto de sempre se encontrar perdido. Não havia referências que o fizessem parar, refletir e propor soluções para aquele imbróglio em que se tornou sua estadia nessa vida terrena.
O que impressionou foi a proximidade de um ponto final para aquele ser humano que havia muito deixara de viver. Uma voz carregada de desesperança e desprovida de força. Eram as últimas palavras como se sua alma estivesse implorando por algum tipo de registro ainda que fosse a alguém que talvez não estivesse disposto a se dar tal trabalho. Saiu da conversa e um quilômetro depois encontrou o desfecho trágico ao ser atingido por um veículo cujo motorista foi incapaz de fazer aquela curva sinuosa.
Fora de seu contexto, Tomaz não se encontrou. A Vila dos Bentos tinha sido a razão de sua existência. Ele tinha alguns planos e em nenhum deles havia a possibilidade de uma vida longe das margens do Juriri, próximo aos seus entes queridos que desde sempre entendiam as suas angústias e o seu jeito de ser. Era feliz sem possibilidade de descrição apesar de um sorriso ser um traço facial não característico de si. Exercia as atividades a ele delegadas não com a maestria de um especialista mas com a perspicácia de alguém que conhece suas limitações físicas e intelectuais mas não se entrega às limitações da alma, atingível até mesmo aos mais instruídos dos indivíduos.
A pessoa a quem Tomaz confidenciou parte preciosa de sua vida, ora sensibilizada com aquele final trágico, tornou conhecida sua história ao publicá-la em coluna de jornal, sites de relacionamentos e perfis literários. Milhares de visualizações e compartilhamentos. Uma história comentada e identificada por muitos que constantemente se veem desafiados pelos acontecimentos a repensarem conceitos e projetos, após acharem que o futuro fosse totalmente controlável.
A história de Tomaz correu o Brasil levando-o a sair do anonimato, ainda que depois de morto. Portanto, era de se esperar que algum conhecido, vítima também daquela cheia do Juriri reconhecesse tal trajetória. Foi seu irmão Gustavo que entrou em contato com Seu Antônio e juntos passaram a investigar o paradeiro daquele corpo dilacerado não apenas por um carro, mas também pelo que lhe havia acontecido desde a enchente na Vila dos Bentos. Dessa maneira, eles chegaram até a lápide 987. Toda uma história resumida a um número que fora do contexto não significa nada. Restaram-se as lembranças de alguém incapaz de fazer mal a qualquer outro ser vivo e assim ele passou a ser conhecido. Foi o próprio Gustavo que encomendou e pendurou naquela cruz de madeira uma placa em inox: “aqui jaz Tomaz, um dos maiores homens do mundo”.

 

 
 
Poema publicado no livro "7 Pecados Capitais"- Edição Especial - Abril de 2017