Aldo Martin Sotero
Petrópolis / RJ

 

 

Uma carona para a eternidade




Pouca coisa sabemos sobre intuições e premonições, e o pouco que sabemos não vai além dos textos de Carl Jung, que afirmava, dentre outras coisas, que todo sonho tem um caráter profético e dessa maneira pode organizar as informações que se apresentam como antecipações de possibilidades. Para Jung, o inconsciente trabalha de maneira probabilística em relação ao futuro. Assim, as premonições não seriam, necessariamente, o resultado de algo paranormal nem sobrenatural. Só que naquele dia, a relação premonição/sobrenatural pareceu evidente demais para mim.
Éramos uma turminha de doze rapazes e moças entre 18 e 21 anos, que se reunia todos os fins de semana na pracinha da igreja do Carmo para conversar e cantar no embalo do violão de Helano, um italianinho apaixonado por bossa nova. Não havia muito mais o que fazer na Criúva dos anos 70.
Entre as garotas, uma delas se destacava pela espontaneidade: Julia, 18 anos, extrovertida, afinada, era a "cantora oficial" nas nossas noitadas musicais. Seu sonho, fazer Medicina em Porto Alegre. Nos últimos tempos só falava nisso, seu entusiasmo chegava a ser contagiante.
Naquela noite, entretanto, Julia chegou diferente. Calada, parecia alheia às conversas, olhar distante. Por duas ou três vezes afastou-se do grupo e ficou parada próxima ao meio-fio como se estivesse esperando alguém.
Por volta das 22 horas, mais ou menos, um carro preto dobrou a esquina e parou do outro lado da rua. Um homem de terno desceu e olhou na nossa direção, parecia procurar alguém. Júlia, então, levantou-se, como se estivesse hipnotizada, e atravessou a rua indo em sua direção. Todos estranhamos, mas ninguém tomou qualquer iniciativa.
De onde estávamos não dava para ver bem as feições do tal homem, víamos apenas que tinha um ar distinto, meia-idade. À chegada de Julia, ele abriu cavalheirescamente a porta do carona, Julia entrou, sequer olhou para nós, e o carro saiu em direção de Caxias. Uma sensação estranha tomou conta de todos nós.
No dia seguinte, às 6 da manhã, Gabriel chegou lá em casa com a notícia: Julia sofrera um grave acidente de automóvel naquela madrugada, na estrada que liga Criúva a Caxias. Morreu no local presa às ferragens.
Segundo a polícia, o motorista fugiu após o acidente mas que, estranhamente, não havia marcas de sangue no seu banco apesar de o impacto ter destruído completamente o automóvel. Mais misterioso ainda é que a porta do motorista estava retorcida e não foi aberta, e uma possível saída pelo pára-brisa seria absolutamente impossível. E mais ainda: posteriormente, pela placa do veículo, o proprietário foi identificado, chamava-se Teodoro, um engenheiro de Alegrete que havia falecido em 1969, num acidente de trânsito, dirigindo esse mesmo veículo. Pela foto dele no arquivo do Departamento de Trânsito, pudemos confirmar que foi ele mesmo o homem que deu a Julia aquela carona para a eternidade.

 

 


 




Conto publicado no livro "Aquele abraço" - Contos selecionados
Edição Especial - Outubro de 2020

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