Fernando Magaldi
Belo Horizonte / MG

 

 

Duquesa de Cornualha




          Duquesa era uma jovem interiorana e extrovertida, a quem a vida, muito cedo, ensinara que nada mais doce do que esperar o momento oportuno para saborear a vitória. Odiava mentira e menosprezo e adorava desprendimento e cooperação.  Se por um tempo, a vida não lhe fora pródiga, em se tratando de inteligência, força de vontade e coragem não tinha do que reclamar.
          Uma afrodescendente, orgulhava de, em suas veias, também correr sangue nobre, o que era afiançado pelos cabelos ruivos que, quase por um milagre, resistiam no tempo às leis da genética. A família se constituiu a partir de um curto e quente romance, entre um inglês que aportara na cidade há uma centena de anos, e uma nativa. Além do filho nas entranhas da ancestral, deixou apenas uma boina ainda guardada como relíquia. Com o passar dos anos, seu branco perdera a alvura, mas não deixava de destacar o brasão de armas do Duque de Cornualha, cujo fundo preto sustentava 15 moedas de ouro.
          Duquesa ostentava nomes e prenomes de santos, parentes próximos ou distantes que para ela, eram razões para bullying e desconforto. Nascida num 8 de outubro, o primeiro Pelágia, era homenagem à cortesã e dançarina de Antioquia que, convertida, foi viver numa caverna nas cercanias de Jerusalém, em penitência rigorosa, e, ao morrer, se tornou padroeira de atrizes, dançarinas e cômicos. O segundo, Ernesta, lembrava o revolucionário argentino, Che, capturado e morto também num outro 8 de outubro. E, assim, juntavam outros mais ou menos famosos e de iguais resultados, encerrados com um Istrud, uma corruptela do bretão Stewart.  Por isso, se orgulhava do alcunha, surgido quando ainda criança.
          O destino tratou de apontar a seus pais que o trabalho rural não fora inventado para ela. Tinha de ir para a cidade, estudar e aproveitar os dons recebidos de Deus. Acostumada com a dureza da vida, não se esmorecia para conseguir sobreviver. Ao participar de um grupo de jovens soube que o pároco da cidade precisava de uma cozinheira e se esforçava para variar o cardápio, inventando e recriando pratos, o que, constantemente o levava a penitências, por causa de um de seus pecados: a gula. O passo seguinte foi ingressar num curso de chef de cozinha oferecido do Serviço do Comércio.
          Certa manhã, Duquesa apareceu triste. Cabisbaixa, estava na cozinha sem cantarolar seus hits preferidos. O padre quis saber o motivo da tristeza. A custo, a jovem cedeu e contou do descontentamento com uma professora, que criara um prato muito bonito e saboroso, mas recusara a dar a receita. O padre ouviu as queixas da jovem e, batendo em seu ombro, decretou: nada melhor do que um dia depois do outro com uma noite no meio.
          Duquesa sepultara a dor, mas dela não se esquecera. Numa terça-feira, o padre lhe comunicou que, no domingo, algumas pessoas iriam almoçar com ele e gostaria de algo muito especial, que fizesse com que, durante muito tempo, não esquecessem da recepção e, como qualquer cachorro faminto, salivassem só de lembrarem o que tinham comido.
          Tremeu nas bases. Mas a voz de seu anjo se fez ouvir mais alta, dizendo que ela seria capaz de não somente satisfazer o padre, como fazer o melhor dos banquetes. Era cabeça funcionando e mãos à obra, pois aquela recepção seria o divisor de águas de sua vida. Assim corria da internet em busca de receitas e descoberta que ingredientes para o pequeno mercado fuxicando os produtos. Não sabia para quem cozinharia, apenas que eram sete pessoas. Como um carro de corridas, o fim de semana chegou. Junto com ele, a angústia da incerteza se tudo sairia a contento.
          Logo que se levantara, trancou a porta da cozinha e começou a armar os pratos. Como aprendera, quando começasse o almoço, o serviço seria contínuo. Só que os grandes chefs sempre contavam com auxiliares. Ela não se via grande nem chef. Um calor estranho subiu dos pés aos cabelos, quando o padre bateu à porta dizendo estarem todos à mesa.
          Ao abrir a porta que dava para a sala de jantar, empurrando o carrinho com o prato de entrada, Duquesa somente não caiu porque estava com as duas mãos sobre a alça do mesmo. Mesmo assim, custou a controlar, porque ele escorregara e parecia deslizar sem controle. Os convidados eram os professores do curso recém concluído. Abriu um sorriso que não escondia o desconforto e começou a servir.
          Por uma hora, ela se revezou entre a cozinha e sala de jantar, entre preparar pratos e distribuí-los aos comensais, que não disfarçavam a vontade de um pouquinho mais ao final de cada rodada.  Sem cerimônias, um jovem professor pediu para repetir a sobremesa. Antes de mudarem de sala teve de se render aos muitos elogios e insinuações ao anfitrião de que corria risco de perder a cozinheira. Era seu momento de glória. Fora sua primeira e sonhada festa de formatura.
          A professora que se recusara compartilhar uma receita foi a última a sair. Antes, pediu ao padre para ir à cozinha de onde voltou toda sorrisos e, amabilíssima, se despediu, prometendo voltar. Vendo-a sair, a jovem correu saltitando como uma criança que acabar de ser presenteada. Deixando aflorar certa dose de orgulho, contou que a professora pediu a receita do prato principal. O sacerdote riu e disse que, certamente, ela não tinha dado.
          Lembrando a origem aristocrática e seu caráter de nobre, ela disse ter atendido ao pedido e explicou que a professora nunca iria atingir o objetivo e reproduzir o prato. Não contara que o feijão da pasta que acompanhava o prato principal era o guandu nem que nela incluíra jiló. Não dissera que o óleo de gergelim fora usado apenas para dourar cebola e alho. Além disso, deixou de mencionar que, após selar o filé, pôs marinar numa infusão morna de gengibre, coentro e orégano, por duas horas, antes de voltar ao fogo. Não disse que o vinho verde era a metade fria da infusão, onde repousou a carne. Eram detalhes de uma iniciante que queria impressionar. E, às gargalhadas completou: Coisas de Pelágia Ernesta Makena Anastácia Acotirene dos Santos Reis Istrud, uma legítima Duquesa de Cornualha.

 

 


 




Conto publicado no livro "Aquele abraço" - Contos selecionados
Edição Especial - Outubro de 2020

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