Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

 

 

O sonho de retornar à terra onde nasceu




Tião nasceu em um lugar especial, área rural.  Em sua juventude andava léguas e léguas a cavalo, para resolver coisas ou  passear.   Para ir a  cidades mais distantes utilizava trem.  A família dele era tradicional naquela região (Família Leite).  Ter servido o exército brasileiro foi um orgulho para ele.  Era muito apegado a sua família,  todavia  no início da década de 1950,  junto com seu irmão José,  decidiu  ir para São Paulo, na esperança de conseguir melhores oportunidades.  
Cada um teve a sua trajetória, sempre unidos.  Quando podia,  visitava os pais.  Depois de alguns anos faleceu a mãe, posteriormente o pai.  O irmão José faleceu primeiro, em 1987, com apenas 63 anos.   Tião viveu  bem mais tempo.
Tião era um contador de histórias, gostava de lembrar-se de coisas vividas junto a família,  parentes e amigos. Em momentos de  reunião,  todos ficavam no aguardo de algo a ser contado, sempre com  entusiasmo.  Era um saudosista nato.  Só deixou de pedalar  depois que  completou oitenta anos.    
Aos 82 anos Tião começa a apresentar problemas de saúde e teve um avc, deixando toda a família assustada. Era forte, resistiu  apesar  de todo o sangue que saiu da cabeça.  O octogenário  ainda tinha muita história para contar.  Gostava de viver, pretendia chegar aos 100 anos, todavia a cada ano aparecia um problema referente a próstata. Apesar de debilitado,  continuava a dizer que desejava visitar sua cidade natal,  antes de morrer.     
A filha mais conversadeira, também a mais romântica,  prometera ao pai que realizaria o sonho  dele.  Ela sabia profundamente o quanto este desejo  era importante. A realização só dependia do dinheiro; boa vontade ela tinha.  Quase todas as vezes que Norma recebia a visita do pai, era a mesma conversa:
- Filha, será que vou morrer sem voltar na minha terra?
E ela respondia: -  Pai, eu prometo que na primeira oportunidade levarei o senhor.
Ele escutava as palavras da filha, mas talvez duvidasse, pois ela estava passando por uma fase  financeira difícil.  Ela temia que não houvesse tempo.  Mas dizia assim: -  Quando existe uma vontade,  existe também um caminho.
Nesta época ela estava trabalhando em um processo de uma cliente muito especial, a d. Elza.   Esta senhorinha ficara viúva,  recebia  uma pensão com valor bem inferior ao correto.  O INSS se recusava em contemplá-la com o valor real.   Processo difícil, que se arrastava ano após ano.  Foram muitas idas ao instituto, para fazer vistas do processo, conversar com os responsáveis, desarquivar,  reclamar etc. Mas depois de quase uma década, finalmente a luta chegara ao fim. Norma  conseguiu ganhar a causa  da senhorinha. O sonho do pai estava prestes a ser realizado. Quando finalmente Norma recebeu os honorários, em uma semana tratou de comprar um carro adequado para a viagem.  Com estas palavras,  a filha alegrou o coração de Tião:  - Pai, o carro já está aqui.  O dinheiro para viajarmos está no banco.
Além da emoção, a ansiedade tomou conta dele; dela também. Ou seja, faltava pouco para realizar o sonho. Era maio de 2011; partiram rumo a cidade de Cássia, Minas Gerais, aproximadamente 850 kms de distância.  O carro foi conduzido pelo esposo Paulinho. Tião foi na frente, com o cinto de segurança, abraçando o violão. Usava uma sonda, seus  pés estavam  inchados, impossibilitando-o de usar sapato; foi de chinelo mesmo. No banco de trás viajaram a Norma e a irmã Regina com o esposo Resende.    
Havia 65 anos que o Tião partira do Sítio do Lajeado, muita coisa poderia  estar diferente em decorrência da instalação da Usina  Hidrelétrica de Furnas. Muitos sítios ou parte deles foram inundados. Portanto seria um desafio  chegar na propriedade que foi de sua família. Viajaram o dia inteiro e,  à medida que eles se aproximavam de Cássia, Tião demonstrava mais ansiedade.   Felizmente chegaram bem. Assim que Tião desceu do carro, começou a chorar.  Era muita emoção para ele.  Já era noite,  se hospedaram no Hotel Ancora.
No outro dia, na hora do café da manhã, Norma já deu início a sua investigação.  Ao pessoal do hotel  explicou a razão de estarem ali.  A sra Cora ficou sensibilizada, consultou um amigo veterinário  que conhecia bem as pessoas da área rural;  a resposta foi afirmativa; ele conhecia o sítio, bem como o atual proprietário.  Então esta senhora pediu para o veterinário  ir até o hotel.  De lá, ele telefonou para  um contato daquela família, explicando tudo.  Quem atendeu foi o próprio Israel, coleguinha de infância e filho de Ovidio Garcia, para o qual o sítio fora vendido. A reação do outro lado do telefone foi de satisfação.  Em poucas horas iriam se encontrar, relembrar muitas coisas. 
Tião ficou muito feliz, e como havia dito, faria algo especial em retribuição  às pessoas do hotel e veterinario,  que o ajudaram a localizar sua ex casa. Ali mesmo,  no saguão do hotel, tocou e cantou para eles. Nem queria parar.
No horário combinado, lá estavam e foram muito bem recebidos. Agora não era mais sonho, era realidade. Tião estava emocionadíssimo.  Conversaram bastante e depois de andar pelos arredores, olhar para cada cantinho daquele lugar, ver novamente o casarão onde nascera, ver a árvore centenária em que brincava debaixo, chegou  o momento de se despedir do lugar (de novo). A seguir, retornaram para o hotel.  Nesta noite Tião foi para a Igreja Congregação Cristã e no púlpito testemunhou sua grande alegria, saudando a todos, agradecendo a Deus. Voltaram felizes para o hotel e  dormiram.
No terceiro dia Tião  queria descobrir onde morava  uma sobrinha. O casal Regina e esposo saíram para tentar descobrir. Caminharam por muitas ruas, adentraram em casas comerciais, abordaram muitas pessoas. Chegaram a pensar que não encontrariam a Antônia, mas foram persistentes. De repente conversaram com uma pessoa, a qual disse conhecer  um dos filhos de Antônia.  Caminharam um pouco mais e chegaram a uma oficina mecânica;  era de fato um membro da família Leite. O primo ficou surpreso, feliz, mas como estava em horário de trabalho, não era possível acompanhar os visitantes até a casa de sua mãe, que também morava em um sítio. Então  o próprio rapaz  que os acompanhou até ali,  se dispôs a ajudar os visitantes. Durante o percurso Tião ia compartilhando verbalmente as lembranças, em cada cantinho que passava.    E chegando à casa da sobrinha, mais emoção!   Mais uma vez o Tião podia olhar para uma  parte do que foi sua infância, terra que guardava lindas histórias.  Após contemplar tudo o  que seus olhos alcançavam, olhou novamente para a Serra da Canastra com um jeito  de despedida.  E foi mesmo!   
Em seguida pegaram a estrada, de volta para o hotel. Não só a poeira ficava para trás, seu coração  também. Tentou ver o primo Plínio,  mas não conseguiu encontrá-lo. Agora só faltava visitar a Usina de Furnas; outro momento bom da viagem.       
Em poucos minutos regressaram para São Paulo, passando mais uma vez pelo centro de Cássia, então Tião pediu para estacionar o carro na frente de uma pizzaria. Com seu próprio dinheirinho fez questão de pagar uma pizza para todos.  Se não aceitassem, Tião ficaria ofendido.  Foi uma forma de agradecer. Sete anos depois, beirando os 93 anos,  o Sebastião Augusto Leite  partiu para a eternidade.  


 

 

 


 




Conto publicado no livro "Aquele abraço" - Contos selecionados
Edição Especial - Outubro de 2020

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