Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

O retorno

 

Meu filho será chamado de Antunes Lobo António, mas não o deixarei ir a nenhuma guerra catastrófica porque ele não nascerá. Estará guardado em meu projeto futurista apocalíptico. Ele não se traumatizará. Não será escritor. Não escreverá, mas será um acontecimentólogo, aquele que experimenta a vida interpelada pela poesia inundada por uma dupla fonte que o encaminhará pelas beiras da faísca acesa pela existência do passado que se renova no presente instante... Será um presencista ideal em sua doce e melancólica ausência. Fruto de meu imaginário simbólico fundador, ele será para mim um guerreiro que durante os dias escavará, por meio de seu olhar penetrante pessoas, coisas, ideias e sentimentos que são frutos da experiência acontecimentista que dá à vida o sentido interpelado num não-sentido que todo indivíduo carrega dentro de si.
Meu filho será batizado por Antunes Lobo António em homenagem ao prosador romancista que conseguiu atravessar os fios traumáticos da experiência e que ainda vive em Lisboa a aportuguesar por meio de sua língua sobrevivente rastros e resíduos de um passado que fincou em sua alma e pousou em seu corpo como uma cicatriz que o põe de pé. Ele sobreviveu a uma guerra imposta pelo ditatorial governo salazarista. Foi aos Cus e se melou de “merda”, mas não se transformou em Judas para não cometer o suicídio e perder de vista o que ele conquistou a duras penas por meio de sua experiência no extremo limite da condição humana e catastroficamente acontecimentalista.
Por meio da experiência, ele foi marcado por um sinal em seu corpo, como um sinal de sobrevivência semelhante ao que Deus deixou em Paulo para que o mesmo não se afastasse da preciosa fé no que virá... Assim o sobrevivente Lobo lusitano tornou-se uma voz, entre tantas outras, que se agiganta em sua laboriosa escrita ferida pela espada que cercou o seu passado, imposto por um Judas que governava o seu país com o ardor de um imperialismo monstruoso e suicida.
Meu filho sairá de mim e trará novidades que me dará força para prosseguir essa ameaçada vida repleta de signos desfigurantes, moventes e fugidios. Meu filho trará consigo um sinal de orientação, e como bússola ele virá ao mundo, e habitará em meu secreto mundo interior, onde só eu, ele e algumas pessoas que o meu inconsciente escolher farão parte desta caminhada singularizada por minha criatividade. Haverá constantes lutas, pois Eros e Thánatos nunca se separam em nossas elucidações e enunciações. Estão sempre juntos dos homens que pensam verdadeiramente sobre a desconstruída construção de um paradigma desparadigmatizado. Eros não dará tréguas com os seus impulsos sexuais, mas ajudará a mim e ao meu filho por meio de seu impulso de criatividade. O desejo de criação nos salvará da completa destruição que Thánatos tentará armar contra mim e meu filho. Thánatos, pai desorientado da razão traz dentro de si a potência da destruição, a pulsão de morte que se aproxima de todos os viventes. Mas, sem a sua presença, a vida depressa ficaria nua, sem rumo, destino e sentido, pois é preciso que o Outro que habita em nós morra para reconhecermos o valor do anti-valor que contrasta constantemente nossa formação ideológica e discursiva. Somos seres “arranhados”, defeituosos e incompletos em sua ansiosa busca por libertação e por realização de sonhos e “escapes” repentinos, mergulhados por esse dualismo que nem mesmo a melhor das “infusões” feitas pela mãe-Natureza poderia evitar ou curar-nos desse inevitável desassossego de vida, desse conflito que nos acompanha desde o nascimento quando fomos tocados por nosso primeiro trauma, um choque causado pela mudança de moradia. Um “antes” é abandonado para sempre e um “depois” é-nos dado a seguir até que num dado momento sentiremos a necessidade de voltar ao primeiro estado, primitivo e fixo por natureza, em busca de conforto para amenizar os nossos conflitos existenciais. E sentimos um alívio imediato, uma leveza de indefinida emoção que nos fará refletir sobre toda a nossa inquietação humana e sobre toda a nossa vã e necessária caminhada.
Poucos são os que voltam para refrigerar as vossas almas e seguir em frente... Mas meu filho voltará a essa fonte onde tudo começou, porque ele é parte de mim e como parte de mim saberá voltar para casa quando eu senti saudade de sua presença, mesmo que de forma metafisicamente, ele sentirá a necessidade de voltar para que a sua vida não seja totalmente desfeita pela pós-modernidade ou pelas portas abertas nas líquidas ideologias feitas de líquidos papeis e líquidas palavras que ele abraçou no decorrer de sua caminhada. E eu, como pai zeloso, aguardarei em silêncio o seu retorno. Um bom filho a casa retornará, mas infelizmente não mais como aquele que eu o conheci. Voltará como um Outro, sacudido por diversas poeiras e contaminado por diversas canções que o fizeram dançar nas margens de letras, sons, ritmos e construções... E eu fico feliz em saber que ele finalmente aprendeu, foi tocado pela experiência, pelos acontecimentos que regimentam o ser humano a ser mais que um vencedor, a ser um atravessador de tempos e de espaços, de discursos e de pontos finais estabelecidos pelas melodias imperialistas...
E de braços bem abertos, o abraçarei para sentir a diferença do corpo que se agigantou e tornou-se um lugar de tantas memórias, de tantos acontecimentos acumulados que também a mim tocou porque eu também voei, sair da zona de conforto em que eu estava. E do meu lugar que não é mais o meu lugar, mas um “entre-lugar”, deslocado e descentrado de sua antiga fixa morada, obtive uma nova visão do mundo e das coisas. Deste movente lugar que eu o abracei e senti a potência da eterna diferença que produz a cultura em sua rica e potente alteridade, voz que habita em mim, um Outro que não mais carrega em si a dualidade ou o monologismo abstrato de um fixo ou sentido lugar, mas um Outro colorido por diversas cores produzidas pela diversidade cultural, um Outro que passeou por diversos lugares, por diversos rios, mas manteve em si a marca genuína que em seu corpo habitou: o sinal de que ele foi tocado verdadeiramente pela experiência. Assim, tornou-se um acontecimentólogo por natureza. E finalmente um abraço veio, e com ele, veio toda angústia, todo um conflito que se choca por épocas diferentes... Eu pensei que estava preparado para abraçá-lo. Não me dei por conta que as épocas foram profundamente distanciadas pela arrogância e pelo individualismo exacerbado, pela globalização materialista, imperialista e insana, pela doentia tecnologia que tirou de cena o que jamais deveria ter sido retirada: a tradição, a oralidade, os bons costumes, as vozes ancestrais, a memória. Eis que eu não me contive pelo grande distanciamento de tempos e espaços. E o vento levou... e foi tudo o que eu me lembro deste sonho que eu tive dentro do sonho que eu pensava que estava a sonhar. As palavras quebradas, os sentidos rompidos, a noite esclarecida, o dia escurecido, o tatear desnorteante, o paladar estonteante e um mal-estar que tirou de mim a civilização de meu ser ... Um grande estrondo aconteceu! Foi grande a rachadura nas paredes de meu solitário depósito mnemônico e o meu mundo interior tornou-se um mar de diversas manifestações culturais. Dei-me, de repente, revestido por um novo ser, um ser perdido que procurou o seu filho e não o encontrou. Mandaram-me um Outro em seu lugar.
Como posso viver sem esta bússola que me orientava quando eu estava perdido? Pensava eu, este narrador interpelado por suas dúvidas e inclinações. E, dentro de troncos e barrancos aprendi, sem bússolas e sem máscaras, sem lugares fixos e sem identidades inventadas que simplesmente o mundo mudou, mudou porque o Homem mudou... E o meu filho não me pertence mais. Na verdade ele nunca me pertenceu. Eu que sempre vivi amarrado a um discurso sem rachaduras, rupturas e travessias. Foi duro, mas aprendi. E esta travessia é lusitana por natureza, porque foi lendo sobre um Lobo que Lobo me tornei. Foi lendo sobre um Lobo que Lobo me sonhei. E o retorno foi desastroso, porque nada na vida se faz fora deste “rio” (o trauma) que percorre os quatro cantos do mundo e está sempre presente na vida e no conhecimento que ela expressa, trazendo conflitos, desconstruções, desarrumando a casa e elaborando novas construções... Ele é o “acontecimento” que faz o acontecimento mover-se, e nesta movência, os indivíduos se transformam neste desequilibrado comboio de incontáveis passageiros. E ao acordar, percebi que a vida era um sonho, e que o sonho trouxe de volta a vida que eu havia perdido. Meu filho eu encontrei e dei-lhe aquele abraço, um abraço com o gosto e sabor errante de longínquas estradas percorridas...

(À querida orientadora portuguesa Fernanda Mota Alves)

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Setembro de 2017