Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

 

O quente inverno do Sul

 

 

       

Foi chegando de mansinho. Ainda era abril. As noites pediam mais uma cobertinha. Noite aconchegante, gostosa para se dormir sentindo o corpo agasalhado.
A lenha foi providenciada. O fogão bem limpo, chaminé nova. Ele, o Mestre Inverno se fez presente.
É noite, o inverno está galopeando. O frio faz o vento assobiar. O minuano trazendo o frio da Patagônia assopra com vontade. Vai ser uma noite gelada. O gado se recolheu cedo, está quieto, comendo feno no estábulo.
Lembro com carinho do meu bisavô, quando contava, chegava ter uma tremida de tão real que ainda era para ele a narrativa dos invernos da Europa. Duravam uns 4 meses. A família ficava no estábulo junto com o gado. Eram famílias grandes. Avós, pais, filhos casados, netos todos morando no mesmo espaço. Eram muito pobres, como também não havia lenha ou outra forma de aquecimento, compartilhavam do calor dos animais para se acalorar. Faziam fogo, queimando o estrume. Tempos difíceis.
Foi um momento de saudade, de lembranças, uma ida no tempo que passou.
Hoje, vive-se outra realidade, o fogão queimando lenha de guamirim, a chapa está quente, aquece o ambiente. O pinhão já está na beirada, para ser sapecado. Quando quiser é só empurrar mais para o centro da chapa. O mel já preparado, no pires, em cima da mesa.
Sentados, toda a família, os convidados em volta do fogão a lenha. Repetem o que a humanidade sempre fez. Desde muito tempo os homens cercavam uma fogueira para se aquecerem, para garantirem a sobrevivência. Não mais uma fogueira, nem uma caverna, mas o calor acolhedor em volta do fogão, na cozinha do casarão.
O brodo, feito de um galo velho, está fumegando. O frio é lá fora, o calor humano dentro de casa é maior. Um casal de amigos vai passar a noite por aqui, as crianças convidadas também. Vão todos fazer a experiência de dormir ao redor do fogo. Os colchões, com as cobertas já estão prontas. O cuidado de manter o fogo aceso vai ficar na responsabilidade do chefe da casa. Querem ser os primeiros a ver a neve dar o ar da sua graça. Enfim, a noite promete uma aventuras especial.
Os senhores da casa sonham também com uma noite amorosa. Ele estava viajando havia dez dias. O regresso foi hoje à tarde. A saudade é grande. O desejo está latente.
São apenas 17 horas, já está escurecendo. O minuano, se faz ouvir com arrepios, que toca a alma, congela o corpo. A imaginação se faz presente, parece ser real.
A conversa começa a fluir. Cada um conta uma história do seu tempo. Os mais velhos lembram causos lá da fazenda.
- ... vou contar uma história que eu ouvi do peão do meu avô, ele sempre lembrava:
" Uma noite muito fria a gente não congelou porque estava no galpão em volta do fogo de chão. As achas de lenha eram toras inteiras. Elas queimavam, o brasido crepitava soltando pequenas faíscas, as fagulhas pulavam de um lado para outro. O chimarrão estava pronto passava de mão em mão. A chaleira de ferro pendurado na trempe, estava chiando, água no ponto para o bom chimarrão. Outra chaleira esquentava ali perto do brasido para não faltar água quente. Como se sabe ela não pode ferver, apenas chilrear.
O fogo aquecia o corpo, a alma. Consolidava a amizade. A conversa fazia sentirem-se irmãos. Um pedaço de carne assava num canto. O cheiro gostoso exalava atiçando a fome.
O peão dizia:
- A água das poças já está congelada. Até a calha de onde pingavam as gotas do chuviscos se transformou num filete, gelado. Não pinga mais.
Nisso chegou um peão com a capa coberta de pedrinhas de gelo. Contou ele, a vaca mocha está parindo lá no fundo da estância,
- Precisamos ir acudir o bezerro, senão eles, mãe e filho, morrem congelados.
Dois estancieiros prontificaram-se de imediato.
Um terceiro disse:
- Eu vou encilhar o baio para trazer o terneirinho. Como ele é bem manso, não se assusta. Foram salvar o bichinho.
O vento era tanto que estava difícil manter-se em cima dos cavalos e seguir a trilha. A chuva fina era gelada. A neve começava a se acumular.
Acharam a vaca parideira. O filhinho ainda estava lambuzado. A mãe tentava protegê-lo com o corpo. Com a luz do lampião perceberam o quadro. Eram dois, o outro filhote estava quase nascendo.
Um dos peões pegou o bezerrinho enrolou na capa que tinha levado, voltou rápido para o galpão. Os demais ajudaram o outro filhote nascer. Ele estava fraquinho. Já havia passado da hora.
Como não havia mais outra capa, enrolaram-no pelego. Foi transportado rápido para o galpão. Fizeram a vaca mocha levantar-se, a conduziram também. Não foi nada fácil chegarem lá onde havia calor.
Quando entraram com o animal foi uma festa só. Tinham salvo três vidas. Ajeitaram um canto do galpão, fizeram um ninho de feno, depois de aquecidos perto do fogo os animais foram alimentados e acomodou-se, a mãe-vaca que ganhou alfafa macia, os animaizinhos mamaram o colostro.
Cansados os peões trocaram as capas molhadas por outras secas.
- Estou com fome: disse um deles.
- É bom salvar uma vida. Vamos nos aquecer, matear, saborear um bom churrasco. Aquela, foi uma das noites mais frias, entretanto os corações ficaram aquecidos".
Assim o visitante, finalizou a história.
Disseram as crianças:
- Nós queremos conhecer uma estância. Ver um bezerrinho nascer. . .
- É a mesma coisa que uma fazenda. Um dia iremos conhecer. Prometo a vocês.
Vamos tomar o brodo, com bastante queijo. Eu cuido do sapeco dos pinhões, descasco e, vocês comem com mel, vai ser a sobremesa dessa noite.
Quem será que inventou o brodo? É muito bom. Conversaram bastante. Cada um tinha um caso para contar. Foram espiar na janela o gelo estava se formando na vidraça.
Alimentados falavam todos ao mesmo tempo.
Era quase meia-noite quando resolveram se acomodar. Os colchões das crianças foram espalhados perto do fogão.
Os adultos também se recolheram.
O casal apaixonado, saudoso de carinho cuidaram de pôrágua quente num litro para aquecer a cama. Deitaram ávidos um do outro. O frio não apagou a chama amorosa. Embaixo de uma coberta de pena de ganso repetiram o gesto amoroso, um para com o outro.
Cansados adormeceram um no braço do outro. A vida lá fora gelada, dentro de casa o calor do fogão, o calor humano equilibrava a temperatura. Onde há amor o frio se dissipa. Até o inverno se faz quente.

 


 

 

 

 
 
Poema publicado no livro Os mais belos Contos de amor - Edição 2019 - Setembro de 2019