Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

No entrelugar da sobrevivência

                

 

A memória ainda está viva…
Assistindo ao Jornal na Record News, em Covilhã, Portugal, um retrato do passado veio a mim, em forma de imagens narrativas, dirigida por um narrador que tenta caminhar pelo passado, e do presente explorá-lo em sua imensa complexidade…
Dado como morto pelo médico… Esta foi a sentença, a princípio, que ecoou na clínica e, depois, em todo o hospital…  Mas não é que ele sobreviveu!!! Não se sabe explicar por vias da medicina gastronômica como tal episódio aconteceu, pois restava apenas 10 % de 100% de vida em seu frágil corpo. Que corpo?! Do narrador que, de repente, é tomado por lembranças que andavam adormecidas há anos…
Hoje, depois de tanto tempo, a escrita mnemônica bate à sua porta… Ou melhor dizendo: à minha porta.
A experiência traumática… Experiência de quase-morte…  Foi a experiência que, por meio dessas poucas palavras, tento traduzi-la, e traduzindo-lha vou libertando de mim essas estranhas imagens que me visitam em dias de estranha tranquilidade…
Falar do momento em que eu sentia o meu corpo deslocar-se de mim mesmo é uma questão que se repete na vida de muitos outros sobreviventes de naufrágios ou quaisquer outras catástrofes. Lembro-me vagamente do sangue que saia de meu corpo. Do sangue esparramado por todo o banheiro, quarto e cozinha. Sentia-me fraco e uma vaga certeza da morte me rodeava. Sentei-me no sofá e tentei levantar o meu pescoço para o alto, pois não conseguia conter a vontade de vomitar, vomitar e vomitar sangue. Nesta época ensinava numa escola chamada Amélia Amado, no bairro São Caetano, e a diretora Edisônia liberou das últimas aulas daquela manhã. Era uma diretora que percebeu que eu não estava bem e mandou-me que eu fosse para casa descansar pensando se tratar de um problema estomacal, pois a disse na época que eu sentia vontade de vomitar e que um grande sabor de fígado exalava por minha boca. Eu também achava que se tratava de algum problema de estômago. O que não se confirmou. Tratava-se de uma úlcera estrangulada.
Foi um telefonema que recebi naquele dia que salvou a minha vida. Um grande amigo chamado Rodrigo, ex-aluno de curso de redação que eu dava em minha residência, foi quem ligou de sua casa, e imediatamente ao ouvir a minha voz fugidia e fragmentada, percebeu que eu estava passando mal. Ao ouvir “Salve-me, por favor, eu estou morrendo!”, saiu desesperadamente de sua casa, arrebentou o portão de acesso ao meu apartamento e rapidamente tirou-me de casa e levou-me à Clínica que tratava de problemas estomacais.
 Eu me sentia fora de meu próprio corpo e percebia que algo estava a me acompanhar… Uma fraqueza tomava posse de todo o meu corpo… E esta sensação de frieza na alma e perda dos sentidos me acompanham até hoje quando penso nesse episódio que marcou a minha existência humana, fazendo de mim um sobrevivente, desses que se silencia de si mesmo e que, no refúgio das palavras, encontra uma distração terapêutica para “curar-se”, mesmo que esta cura seja das mais estranhas que já se viu em bêbadas águas de um rio que nunca dorme…
Quando aqui menciono “um rio que nunca dorme”, trago à memória outra difícil lembrança, outro episódio que também marcou a minha vida em terras de águas claras da cidade de Ilhéus que influenciou o escritor Jorge Amado a escrever vários de seus romances, como, por exemplo, “Cacau”, “Gabriela, Cravo e Canela”, “Tieta do Agreste”, “Tenda dos Milagres”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Terras do Sem-Fim” e São Jorge dos Ilhéus”. Estando eu numa pequena ilha, acompanhando alunos num final de semana de feriado, vi a minha vida ser levada por profundas águas obscuras. Naquele momento pensei dentro de meu perturbado inconsciente: “Eis o meu fim!”. Não sei como as águas me devolveram por ordens de seu Criador. Sobre este episódio num outro conto eu mencionei com passagens bem esclarecedoras. No momento apenas trago para justificar o termo “um rio que nunca dorme” que estou sempre a usar, seja em minhas poesias, seja na prosa ou ainda em artigos em que investigo o trauma na literatura.
Alguns sobreviventes relatam o fato único em sua vida, eu, porém, tenho vários fatos que marcaram a minha vida: estar diante da morte, e de repente, após segundos, perceber que você não morreu…  Inacreditável até mesmo para você, o sobrevivente!
Imagens misteriosas… Imagens complexas que moram num reino difuso do pensamento. Imagens que habitam num “entre-lugar”, um lugar em que muitos médicos discordam do testemunho dado pelos sobreviventes, definindo como sensações e sentimentos fugidios que o paciente estar tendo de relampejo, divagando sob imagens distorcidas e incapazes de serem avaliadas cientificamente. Porém, há médicos e especialistas que acreditam que é exatamente esse “entre-lugar”, abstrato por natureza e existencial por excelência, um lugar real e que precisa da atenção de todos por repetir-se em muitos outros discursos ditos por outros sujeitos que sobreviveram a outras catástrofes. Mesmo que o sobrevivente recorra a um determinado grau de extensão imaginária, parte significativa de seu relato constitui conhecimento que precisa ser analisado por quem, por direito, deve investigá-lo.
Este relato testemunhal ou narração autobiográfica é um esforço mnemônico mediado por um tecido real investido por um imaginário simbolicamente “presencista”, pois o presente nada mais é do que o resultado de um sobrevivente passado. Nesse sentido, o presente é a contínua ação de um passado em estado de movência ininterrupta, onde o prosador, revestido por um ofício histórico, narra e descreve apenas o resto de um resíduo que sempre estará presente por meio da vida de quem reconhece ser um transeunte de um mundo em devoração, mundo-tempo espacializado por um estado de coisas que tentamos agarrá-las por meio da escrita. A escrita narratológica serve, então, de relevante instrumento que ressignifica o sentido da vida humana.
A fraqueza que eu mencionei em parágrafos anteriores refere-se a um estado psicossomático que coloca o ser diante de uma situação de extremo-limite da vida, momento em que o ser percebe que o fôlego de vida começa a faltar-lhe. Foi isto que eu senti quando não via nitidamente as coisas ao meu redor, restando-me apenas a frágil capacidade de ouvir, ouvir angustiantemente as pessoas falaram como sons perdidos ou ecos de um diálogo interrompido.
Depois de muitas horas depois, a lucidez veio ao meu encontro, e eu percebi que não havia morrido. Agora era tentar lutar contra a presença de uma sensação de incapacidade de viver. Havia perdido muito sangue e eu estava fraco e totalmente entregue ao hospital, mas alguém estava ali, do meu lado, apoiando-me com palavras de regozijo e encorajamento. Era ele, Rodrigo, aquele tipo de amigo que quase não mais existe nos dias de hoje. O verdadeiro amigo se faz em tempo de guerra, em tempo de dor, em tempo de aflição...
Rodrigo e o médico que me atendeu na clínica e, respectivamente no hospital, são pessoas que jamais esquecerei enquanto eu viver. Quanto ao médico da Clínica Gastroclínica, Marcelo Meira, é a pessoa que, se hoje estivesse viva, justificaria o meu testemunho como real e verdadeiro, seguido de Rodrigo, cliente do médico que me socorreu quando eu estava, em minha residência, a passar mal. Fui acometido por uma tremenda hemorragia ocasionada pela “úlcera estrangulada”.
Jamais esqueci deste dia!!! Vi a minha vida ir embora e a morte aproximar-se de uma forma que eu não consigo explicar completamente, pois falar deste episódio perfura um pouco a alma, desinquieta o equilíbrio psicossomático, levando-me ao um desconforto mental… Mas, de uma coisa eu tenho certeza: sou um sobrevivente catastroficamente, pois lembrar destas experiências de vida diante da morte é, sem sombra de dúvida, trazer à tona um passado que ainda se faz presente… como “sombras” que ressignificam o meu estar no mundo, como um rio que nunca dorme, como “rastros-resíduos” que formam a minha constituição física, psíquica, cultural, intelectual e espiritual, como parte de mim que, por meio desta escrita, consigo ver, à distância, os efêmeros segundos que estive diante da “linha” que separa a vida da morte.
Passar por essas situações de extremo-limite da existência humana é perceber que somos abençoados por Deus, em sua infinita misericórdia. Passamos a enxergar a vida com uma outra visão: a visão de que nada acontece sem que Deus não permita. Uma folha de uma árvore não cai de seu pé se Deus não o permitir. A permissividade divina movimenta os seres e as coisas no mundo, cruzados por um tempo que se esvai, transformado pela eterna e doce poesia que enche de esperança a vida da gente.
As rosas não mentem jamais e são nas flores que encontramos o rumo da vida a seguir… para o bem ou para o mal dependerá daa escolhas que fizermos na vida. E eu sobrevivente desta história trago à tona uma porção arrancada da flor da esperança… Entre o “malmequer” que o mundo oferece e o “bem-querer” que Deus nos oferece, decidi escolher o “bem-me-quer” exalado pelo perfume das flores que habitam o Jardim de Deus. Assim, a esperança que eu deposito na escrita traçada e interpelada pela Grande Escrita do “Bem-querer” faz deste texto um testemunho do bem-querer expresso na vontade de vencer que cada um carrega dentro de si.

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Bem-me-quer, Malmequer" - Edição 2018 - Março de 2019