Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

Crônica escrita no ponto

 

            

Tenho algo a dizer para o ouvinte leitor. Dizer pelas beiras do discurso, pois não mais escrevemos como antigamente. No passado, escrevíamos movidos por uma memória feita por um fio condutor que dava à voz a energia de um barco a navegar no eterno mar da certeza que cada palavra carregava consigo mesma… Escrevíamos no início do século passado coisas que ainda se fazem presentes nos tempos atuais. Havia a necessidade de escrever para que a humanidade não perdesse o rumo de sua história.
Os fantasmas que nos visitavam por volta da meia-noite eram fantasmas que sentiam a necessidade de habitar as nossas almas para refrigerar o conhecimento humano. Hoje, os homens não sentem a vida como antigamente… Pensávamos, escrevíamos, tocávamos, sentíamos… O contato humano era necessário. Nos líquidos dias produzidos por uma modernidade líquida e tardia, o homem não toca mais com a firmeza e segurança da tradição. Tornou-se obsoleto a presentificação da memória costurando uma forte identidade… O ser identifica-se liquidamente, selvagemente, violentamente, digitalmente… perdidamente. Vivemos a época da crise da existência, a crise da moral e dos bons costumes. Pensamos pouco, agimos pouco, sonhamos pouco, cantamos pouco, vivemos pouco, e poucamente tornamo-nos presas dessa pouca falta de sentido filosofal que impulsiona a alma à criatividade e inventividade.
Já deu um minuto, já passa das 22 horas, e eu estou aqui a escrever algo que o ouvinte vai chamar de crônica que sofre do mal “cronicamente inviável”. Mas por quê crônica!? Porque as palavras comportam-se com rebeldia clandestina, sarcástica e fluída. Elas, as palavras, são feitas para servir o homem ou os homens foram feitos para servi-las!? Depende do contexto em que a voz é narrada ou do olhar ameaçador do narrador que ajoelha-se diante das palavras que lhes são dadas fantasmaticamente.
Já deu um minuto, já passou da meia-noite, e eu ainda estou aqui a escrever algo que precisa ser desencaixado, pois o meu ouvinte gosta de coisas que não se fixam facilmente, dada a ordem do discurso beirando a sua desconstrução, e eu também faço parte desta alteridade porque quando escrevo, não escrevo para mim, escrevo para um outro que habita em mim, um outro que, a todo momento, ameaça o meu ser em sua desestruturada formação.
Já deu um minuto, e a nova vítima dessa caminhada é alguém que neste momento, ao ler esta crônica que não se completa, encontre algo que complete a sua inconstante incompletude humana. Assim, satisfeito estou quando sinto que o leitor de meu texto atravessou a ponte da proibição, e ao passar por ela, catastroficou-se, ferindo-se a si mesmo duplamente, e no meio desta ponte, avistou o transeunte o espelho de si, e ao se ver a si mesmo, percebeu o quanto não era mais o velho ser que sempre estivera presente em sua caminhada. Percebeu-se diferente, como que seu corpo tivesse abandonado uma parte de si, antes da travessia. Ao atravessar a ponte avistou o outro lado da terra desconhecida. O pânico assaltou-lhe. Estava em crise, mas sabia que era preciso sentir dor para apreender esse novo ser feito de diferentes ingredientes, de intensas palavras cobertas por conceitos embriagados por Dionísio.
Dionísio é o habitante central da floresta perdida, aquele que impulsiona o sujeito a pensar diferente, a romper com o estabelecido, a desconfiar das fixas palavras. Apolo habita na oposta posição dionisíaca. Prefere formar estradas, ligadas por pontes cimentadas por um sólido fixo pensar, onde o homem é uno e homogêneo. Dionísio sempre a contestar, Apolo sempre a concordar! Como faces de uma moeda, são partes de uma mesma construção, regida por signos diferentes…
Já se passaram dois tempos de uma mesma medida. A vítima espera na cruzada estrada de bombas a explodir. Dionísio é libidinoso, Apolo mais centrado na consciência das coisas que estão por vir numa curvatura de certezas que se firmam na reta do pensamento. Dionísio assusta, distorce a verdade, desconfia de tudo e de todos, procura um lugar e não se adapta a ele. Suas vítimas são feitas de pura incerteza. Habitam lugares ameaçados, disformes e distantes. Apolo ama o próximo, e vive arrumando as coisas que estão fora de lugar. Dionísio adora a bagunça, sente-se bem com a desordem e o caos. Abraçá-los de uma só vez é pouco provável. A quem tenha feito tal tentativa e depois, jogou-se ao vento e perdeu-se para sempre, pois um é água que se movimenta, buscando a forma exata nos corpos estruturados, o outro é fogo ardente, alastra-se rapidamente…
Pronto, estou chegando ao fim desta estrada feita por dois caminhos: um conduz à terra firme; o outro deságua suas vítimas no bêbado mar de indecisas tempestades avassaladoras… Só, no de repente, no eclipsar dos pensamentos, o encontro acontecer: Apolo abraça Dionísio e se despede segurando sua certeza, Dionísio dá um sorriso de satisfeito, consciente de que o seu caminho é mais árduo, pois é seu dever desconstruir as estradas bem construídas por Apolo. Um não vive sem o outro. Um é diferença; o outro, é repetição; um afirma, o outro interroga. Hoje a vítima de um pode ser, amanhã, a vítima do outro, e juntos e misturados, formam essa crônica, crônica escrita no ponto. Ponto de interrogação. Ponto de exclamação!!! Ponto de interrupção. Eis o fim. Ponto final.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Casos da Meia-noite" - Edição 2019 - Novembro de 2019