Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

174517

 

Era Primo, mas não qualquer Primo, não confundamos! Nasceu em Turim em 1919, na Itália. Era químico, mas o que ele gostava realmente de fazer era contar as conchas à beira-mar. Encontrava uma paz imensa quando olhava a extensão do grande oceano. Inspirava-se com o mover das grandes águas, sentia um grande alívio que acalmava a sua inquieta alma aflita. Foi levado ao campo de concentração de Auschwitz no momento em que sua vida estava em efervescente produção cultural. Sentiu dentro de si um esvaziamento de toda sua caminhada de vida, em forma de uma brusca separação entre o corpo e a alma, e isto era incapaz de ser traduzido em qualquer língua. Primo era leve demais para enfrentar o horror dos horrores, ao lado de tantos outros que foram submetidos à condição desumana.
Há uma história bíblica, intitulado “Filho pródigo”, em que o filho mais novo pede ao seu pai a sua herança e vai curtir a vida, os prazeres do mundo. Depois de algum tempo, o dinheiro acaba, e ele se vê diante de uma cena que jamais pensou que, um dia, fosse presenciar: a fome, o abandono e a miséria. Estava faminto e desejava comer o que os porcos comiam. Assim, aconteceu em Auschwitz com o personagem que trago à tona neste texto: Primo Levi, que deixou de ser chamado pelo nome, como os demais prisioneiros, e foi tatuado pelo número “174517”. No lager as pessoas começam a perder suas identidades, e a tentarem, simplesmente, sobreviver. Sobreviver é a palavra centralizadora que adentra nas frágeis mentes assustadas com o terror à vista.
Primo Levi poderia ter sido fuzilado como tantos outros foram, ter sido levado à câmara de gás e finalmente morrer, enterrado vivo como tantos outros foram, ou jogados nas valas (covas) abertas, forçosamente, por outros judeus. Poderia ter sido levado ao forno crematório para ser queimado, não ter sobrevivido à fome, aos maus tratos, à falta de dignidade, à morte de seus familiares e de seus colegas, ter adquirido uma doença e morrido como tantos outros. Poderia ter tido um final trágico como tantos outros que desafiaram a “máquina da morte”, equipada e armada poderosamente, protegida por um sistema de pensamento cruel, insano e louco, foram perseguidos, torturados e silenciados. Poderia, ainda, ter-se levantado contra a situação em que ele se encontrava, mas ele reconhecia que este levante (revolta) o levaria, finalmente, à morte. Assim, procurou, de todas as maneiras, sobreviver, e pagou um alto preço por isso. Viu com os seus próprios olhos o que jamais vira durante toda a sua vida. Tentava viver o dia como se fosse seu último dia, pois, a todo momento, ele observava o desaparecimento de pessoas que, ainda ontem, ele tinha notícia e, hoje, não o tinha mais. As pessoas desapareciam misteriosamente…
Aos poucos foi adaptando-se à sua nova identidade, uma representação das coisas que rapidamente desaparecem de seu mundo interior. O pensamento iluminista foi descartado como uma carta fora do baralho, como uma nuvem a se dispersar no imenso céu cinzento. O tatuador que o tatuara era um judeu escolhido para tal serviço. Levi silenciosamente perguntou o seu nome, e ele, discretamente, disse-lhe: “Sou Lale Socolov. Nasci na Nova Zelândia, e, se eu sobreviver, pretendo morar na Austrália”. E nunca mais Levi a avistou.
Levi incomodava-se ser chamado por um severo kapo pelo número 174517. Teve um momento de silenciosa reflexão que ele falou a si mesmo: “Será que sou mesmo o Primo Levi?”. E todos os dias, iniciava-se a grande luta contra o tempo que lá estava, repleto e arranhões, feridas, saudades, melancolias, desatinos, desesperos, mas sempre se manteve “equilibrado”, se é que se pode equilibrar-se diante dos horrores que eram vistos diariamente!
Um dia, Levi deu de cara consigo mesmo, diante de um pedaço de espelho que ele encontrou na sala de uma velha biblioteca, e não o reconheceu. Sentiu-se “um outro”. Lá estava uma mulher de nome Dita Dorachova, uma jovem checa de 14 anos, residente de Auschwitz. Ela lhe disse que foi enviada para o Bloco 31, único bloco residencial do complexo e que teve sorte porque não morreu assim que colocou os pés em Auschwitz e como que por um milagre não foi direcionada para as câmaras de gás como centenas de milhares de outros jovens. Levi conversou muito rapidamente com ela, pois um soldado nazista estava a se aproximar, trazendo consigo uma arma na cintura, fazendo-os dispersarem. Ambos logo saíram, cada um seguindo o seu destino, mas nunca Levi esqueceu aquele rosto que escondia em si, a vontade de fazer daquele horrendo lugar, um escondido lugar de leitura.
Outro dia, quando estava sendo levado violentamente para uma sala especial, pensou Levi: “É chegada a minha hora.” Mas o kapo apenas o interrogou sobre o que ele conhecia, pois falava de forma não tão satisfatória o idioma alemão. Ele respondeu ao soldado que era químico, antes de ser levado ao campo de concentração. E naquele momento, ele foi escolhido para trabalhar no laboratório. Mas nada mudou em sua vida porque ele continuava como qualquer um que lá se encontrava. Apenas passou a adquirir uma função, e foi, por meio desta função, que ele começou a escrever, em silêncio, sobre o que os seus amedrontados olhos observavam. Pensou consigo: “Se eu sobreviver, publicarei um livro, contando sobre tudo o que aqui eu vi, vivi e vivenciei. Ele viu de tudo. Viu o que jamais gostaria de ver. Viu a máquina da morte em grande atividade, e sabia que muitos de seus colegas foram assassinados impiedosa e vergonhosamente.
Entre os corredores da morte, viu uma rapariga (no sentido usado em Portugal) sentada, entre escombros de corpos mutilados, a chorar amargamente. Ao aproximar-se, perguntou-lhe: Qual o seu nome? E por que choras? Falava rapidamente e em um tom remoído por um silêncio ensurdecedor. A jovem respondeu: “Eu me chamo Liliana Segre. Mataram toda a minha família!”. Primo Levi, tentando consolá-la, disse: “Eles estão melhor que nós porque não sentem mais dor, medo e pânico. Deve continuar a viver, a lutar para sobreviver”. E, de repente, a pobre menina saiu a correr daqueles escombros, e desapareceu. Levi nunca mais teve notícia dela. Em Auschwitz tudo desaparece, tudo tem um aspecto mórbido, tudo se envelhece rapidamente, tudo se perde, até as palavras. Em Auschwitz pensar faz mal à saúde, impede o sobrevivente de continuar tentando caminhar, acreditando que algo há de acontecer, mas sem precisar recorrer às palavras, pois elas, naquele momento, não servem para nada.
Lutar contra o campo de concentração, repleto de homens armados até os dentes seria antecipar a morte. E Primo Levi lutava para sobreviver. Todos o chamavam de 174517, menos, seu “eu interior”, que guardava secretamente o seu nome de registro. Pensava Levi: “Se um dia, eu sair daqui (o que é impossível, retrucava o seu inconsciente adormecido!), não serei jamais o homem que já fui um dia, antes de terem me enfiado nesse “cemitério do horror”. Constatou algo diferente entre as pessoas, e logo descobriu o significado das cores em forma de triângulo que eles carregavam em seus corpos: vermelho para os políticos, preto para os associais, marrom para os ciganos, verde para os criminosos comuns, cor-de-rosa para os homossexuais, amarelo para os judeus. Ele, como os demais judeus, além do primeiro triângulo que usava, um segundo, disposto em sentido inverso, o que formava uma estrela de seis pontas. Levi soube, por meio de terceiros, que Auschwitz tinha um comandante perigoso, um homem violento e de sangue frio, conhecido como Rudolf Höss, mas nunca esteve face a face com esse monstro.
Auschwitz era a morada de Primo Levi e de tantos outros, porém, Levi não sabia até quando viveria. Quando a noite chegava, corpos se espalhavam por camas sujas e por um chão feito de dor, silêncio e desilusão. Ninguém conseguia conversar com ninguém. A noite era acompanhada por terríveis fantasmas, mulheres sem face, crianças sem infância, idosos doentes, homens desumanizados. A noite era o pior momento dos sobreviventes porque ela trazia consigo, a incapacidade de se pensar e a impotência de imaginar-se humano. A língua permanecia sobrevivente, sofrida, arranhada, maltratada, humilhada, violentada, mas viva, em silêncio…
Quando o dia amanhecia, amanheciam também vários corpos mortos, sem força, famintos, entregues... Os que levantavam vivos eram levados ao pesado trabalho, expostos à falta de dignidade e condição humana. Eram tratados como números ou objetos a serem usados e descartados. A banalidade do mal instalou-se no campo de extermínio, de forma potente e avassaladora. Primo Levi percebia o olhar do soldado faminto por sangue, faminto por morte, dominado por um pensamento não-selvagem, e não imaginava nunca que, mais tarde, pudesse sair desse miserável cemitério, onde a razão inexistia, os sentimentos apodreciam e as ideias desapareciam…
Assim foi AuschwitzA trégua veio, os afogados e os sobreviventes foram resgatados. Já era tempo! Mas, um pouco quase tarde demais. Se não agora, quando? E Levi a si perguntou: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”, É isto um homem?. Ferida foi a humanidade para sempre em sua História. E jamais nenhuma escrita conseguira traduzir o que os seus olhos viram, nem mesmo a sua escrita traumática e testemunhal, porque nela há uma “falta” constante, e esta falta foi levada pelos mais de seis milhões de mortos que não conseguiram sobreviver. Levaram consigo a parte do testemunho que só com o tempo virá! Quem sabe, desça do céu, um grande e potente anjo, que tenha presenciado tudo e tenha guardado em sua “mente divina” o que falta em nossos frágeis discursos sobre a presença do “mal” que o homem permitiu ser por ele contaminado, destruindo milhares de vidas inocentes, num continente que abraçou o estruturalismo da razão humana como fonte de produção do saber.
Primo Levi, como personagem desta história incompleta ou deste “texto dito pelo dito”, intermediado por um autor que escreve há alguns anos sobre Auschwitz, declara, No fundo de seu livro: “A viagem levou uns vinte minutos. O caminhão parou; via-se um grande protão, uma frase bem iluminada (cuja lembrança ainda hoje me atormenta nos sonhos): ARBEIT MACHT FREI – O trabalho liberta” (LEVI, 1988, p. 20). E dizendo no dito indizível, o enunciado se anuncia, o signo não consegue encontrar um caminho seguro para ancorar sua inesquecível dor, sua travessia terrorista, estúpida e inválida. Resta apenas de Auschwitz sons, ruídos, letras, e, principalmente, números. “Meu nome é Primo Levi, também conhecido como 174517. Trago em corpo essa cicatriz como prova viva de minha passagem pelos labirintos do terror que foi Auschwitz. Não sou alegre, nem triste, nem poeta, não tenho ódio nem amor. Tenho apenas a sobrevivente escrita que me faz continuar vivo, mesmo que eu tenha me suicidado, dizem!”, porém, estou vivo.

 

 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Contos de Amor e Ódio" - Julho de 2018