Claudia Fontenele Alves da Silva
Águas Claras / DF

 

Três horas

                

                Safira acordava todas as noites por volta das três horas encharcada de suor. Seus sonhos sempre se repetiam. Eram sonhos horripilantes. Pareciam cada vez mais reais.
                Os sonhos começaram a ocorrer logo depois do acidente de carro que ela sofreu com sua família.
                No início, parecia apenas o reflexo do trauma sofrido. Ela sonhava que estavam passando por um lugar belíssimo, porém havia curvas sinuosas na estrada que percorriam. Ela e seus filhos estavam alegres, cantarolando uma belíssima canção. De repente, os pneus traseiro e dianteiro estouravam. Seu marido perdia a direção e, em questão de segundos, o carro capotava. Aos berros, Safira clamava por socorro enquanto o carro ia descendo despenhadeiro a baixo. Era uma descida torturante. Ela sabia que iriam morrer afogados, uma vez que a queda acontecia justamente no ponto onde havia o mar.
                Quando o carro batia na água, Safira acordada encharcada de suor. Sempre às três da manhã.
                Safira começou a se preocupar. O acidente parecia ter sido um aviso de Deus para que houvesse conserto na família. Pelo menos, era o que ela acreditava.
                Aos poucos, outros detalhes foram aparecendo, à medida que ela sonhava.
                O sonho começou a se desenrolar com mais nitidez. No percurso da estrada, quando tudo parecia bem, Safira percebeu que nuvens negras pairavam sobre o carro, apesar de ser um belíssimo fim de tarde. As nuvens foram se formando ao redor do carro.
                Não eram simples nuvens advindas de uma tempestade que se avizinhava. Eram nuvens com aspecto de gafanhotos quando atacam uma plantação.
                Safira e a família ficaram assustadas quando perceberam que eram seres malignos que atacavam o carro. Eles investiam no carro com avidez. Tentavam transpor os vidros, porém havia uma barreira de luz que impedia sua passagem. Quando o carro caia no despenhadeiro, Safira acordava.
                Cada dia, ela acordava com um hematoma no corpo e também podia sentir a sensação de afogamento. O que significava tudo isso?
                Em uma determinada sexta-feira, Safira acordou sobressaltada. Havia algo de diferente. Ela percebeu que se encontrava descendo as escadas de sua casa. Tudo estava muito silencioso. Abriu a porta da sala, atravessou o quintal da casa e se deparou andando por uma estrada longuíssima. Era um lugar escuro. Havia uma vegetação que margeava a estrada. Safira começou a chamar os filhos e o marido. Silencio absoluto.
                Continuou andando pela estrada até que encontrou uma passagem por entre as árvores. Ela olhou a sua volta. Viu um campo verdejante. Já não estava tão escuro. Havia uma luz acesa em uma pequena casa. Safira correu mais que depressa para ver quem morava ali.
                Olhou pela janela. Lá dentro estavam seu marido e filhos. Ela chamou por eles, mas eles pareciam não ouvi-la chamar.
                 De repente, suas pernas começaram a afundar em um pântano pegajoso. Ela não tinha em que se agarrar para não desaparecer. Sombras começaram a surgir. Os tais seres apareceram novamente. Eles envolviam-na com terror. Em desespero profundo, Safira clamou por ajuda. Um estrondo dissipou as hostes infernais. Safira foi envolvida por uma luz brilhantíssima. Uma mão fortíssima segurou-a nos braços.
                O medo deu lugar a uma calmaria. Ela se viu transportada para uma praia maravilhosa. Olhou as estrelas que cintilavam no céu. As ondas do mar estavam mais calmas. O coração não estava acelerado, pois gozava de uma certeza: a morte havia ocorrido de fato. O acidente tinha sido fatal para ela. Às três horas ocorrera o passamento.
                A família havia sobrevivido ao acidente. Safira, quando o carro capotou e caiu desfiladeiro abaixo, foi envolta em trevas profundas. Ela não queria acreditar que chegara o seu fim. Tentou se apegar às lembranças da viagem. Os momentos alegres e derradeiros do seu último dia.
                Ao aceitar o inevitável, Safira percebeu que a luz sempre esteve à sua volta. As trevas eram apenas o resquício de querer se apegar a um corpo que já estava sendo comido pelos vermes.
                Safira aceitou a morte e, pode seguir sua última viagem. Ela encontrou um vastíssimo campo verdejante. Pássaros cantavam. Borboletas pousavam nas flores. O céu tinha uma cor azulíssima. A dor e o medo ficaram para trás.
                Chegando três horas, o relógio parou de andar. Não haveria mais fim. Somente a eternidade para ser desfrutada. O sonho cessou.

 

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos de Arrepiar" - Edição 2019 - Maio de 2019