Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

O mendigo leitor

                

                

           Uma rua bonita e bem larga, mas sombria por causa de ter nas calçadas árvores frondosas. Essas árvores desabrocham em flores uma vez por ano e ficam floridas por quase seis meses. Sempre gostei de passar na rua  das Acácias Imperial, as flores em cachos da cor amarela e perfumadas envolvem as pessoas que ali passam com um enorme sentimento de paz  e reverência ao Criador.  Como foram plantadas dos dois lados da rua, com o tempo elas trançaram os galhos no alto fazendo um corredor estupidamente belo.  O chão atapetado de amarelo com raios de sol filtrados por uma brisa suave, impossível não se emocionar.  Tudo de belo, de puro e de encantamento como um poema a céu aberto.
           Não fazia parte do meu caminho, mas eu passava por lá quase todos os dias. Nos finais de semana muitas pessoas vão para fotografar aquele espetáculo.
           Notei que num cantinho encostado ao tronco de uma das árvores tinha uma pessoa sentada com um livro nas mãos. Aproximei-me vagarosamente e vi que era um mendigo maltrapilho, sujo, cabelos desgrenhados e sapatos rotos.  Aquela cena mexeu comigo e não saiu da minha mente.
          Alguns dias depois voltei lá, ele estava no mesmo lugar e lendo. Ele contrastava com toda aquela beleza, porém ao mesmo tempo completava aquele cenário com uma singeleza que só um Monet poderia retratar numa tela. Aproximei-me e atrevi a perguntar: - Está lendo quem? Ele olhou para mim e virou a capa do livro A Arte Sagrada de Shakespeare. O Mistério do Homem e da Obra” e voltou a concentrar-se na leitura.
            Dois dias depois, confesso que fui à rua das Acácias só para vê-lo, levei um sanduiche e uma garrafinha de suco de laranja e entreguei a ele.  Fechou o livro com um marcador de páginas, pegou o lanche, balançou a cabeça em agradecimento, comeu e voltou a ler. Se eu já estava intrigada agora estava perplexa. Repeti o gesto durante as duas semanas seguintes em dias alternados.
          Tive que viajar a trabalho a passei uns dez dias sem ir até aquela rua encantada. Quando voltei passou uma semana chovendo, sendo assim fiquei uns quinze dias sem apreciar aquela paisagem.
            Numa tarde ensolarada preparei um lanche caprichado e fui ver o mendigo leitor. Quando ele me viu, fechou o livro e deu um sorriso. Ai, o sorriso dele bambeou as minhas pernas, senti um misto de sensações com calafrios, arrepios e interessante, senti muita alegria. Entreguei o lanche a ele e olhei-o por um instante e percebi a fascínio e sedução que o mendigo shakespeariano e todo aquele contexto exerciam sobre mim.
           Saí andando vagarosamente com vontade de dançar, de rir e de chorar, tudo ao mesmo tempo. Estava como diria meu pai: procurando chifres em cabeça de cavalo.
           Dediquei meu tempo a me envolver em outros assuntos para desmistificar o mendigo leitor e deixei de ir à rua de passarela amarela.
            Certa noite fui assistir no auditório da Universidade, onde eu dava aulas, uma palestra sobre literatura.
           Foi anunciado o palestrante e quando ele entrou senti uma descarga elétrica de sentimentos que explodiram naquelas sensações de arrepios, calafrios e de alegria. A palestra foi excelente e no final fui cumprimentar o mestre, então, ai então... nossos olhares se encontraram, ele sorriu e minhas pernas bambearam. Havia algo de magia secreta naquele olhar enigmático.
          Não consegui dormir. Na tarde seguinte fui levar o lanche para mendigo leitor. Ele estava lá maltrapilho, mas de cabelos penteados, lavados e de barba feita.
          Podemos conversar? Perguntou-me. Respondi trêmula: Quando, onde? - Amanhã, aqui. Falou com voz entrecortada.
        Eu já estava rendida àquela situação e não ir seria como perder o último capítulo da uma história. Ele poderia ser um procurado pela polícia, um louco ou até mesmo um maníaco esquizofrênico. Como saber sem ir ao encontro? Fui, por que não?
        Ele estava irreconhecível, todo arrumado e no mesmo lugar, de pé com uma pasta embaixo do braço e veio andando em minha direção.
        Uau, mil vezes uau!!! Olhou-me e falou pausadamente: - Tem um bar aqui perto, vamos até lá, vai ser melhor para conversarmos.
        Resumindo: Ele contou que perdeu toda a família num acidente de avião. A vida ficou sem sentido. E passou a viver nas ruas, debaixo das pontes e comendo quando alguém oferecia. E o que o mantinha vivo eram os livros que encontrava nas lixeiras. O que não faltava para ele era dinheiro. Comprou um pequeno apartamento onde guardava alguns pertences. E só ia até lá quando era convidado para fazer palestra.
         Tomamos um café e ele entregou-me a pasta e pediu que eu voltasse quando tivesse lido os recortes de jornais e mais alguns papéis e fotos. Continuou ele: - Vim morar nesta pequena cidade porque aqui ninguém me conhece. E quanto a palestras, a comunicação é através de e-mails e eu venho como se vivesse em outro país.
         Li e era tudo verdade e muito triste.
        A coincidência só acontece quando dois elementos são atraídos para um campo magnético, por razões desconhecidas por mim, são imantados para coincidirem.
          Continuamos a nos encontrar à rua das Acácias. Dividimos e compartilhamos histórias, alimentos e muita emoção. Desvestimos o mendigo. Enterramos as tristezas.
        Sem razão para analisar os fatos nos entregamos sem resistência e desabrochamos no tempo certo, como toda à natureza.
        Agora fazemos como as Acácias, uma vez por ano voltamos para fotografar as maravilhosas flores amarelas onde fomos magnetizados para sempre. Há dez anos estamos vivendo um lindo romance repleto de amor e cumplicidade.

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos de Arrepiar" - Edição 2019 - Maio de 2019