Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

Travessia de um escavador de palavras

 

 

         História contada numa tranquilidade estando o narrador sentado numa cadeira sem conforto adequado, numa rodoviária que continua viva durante toda a madrugada, refiro-me à rodoviária de Salvador. De repente, ouço uma voz do ouro lado de onde eu estava (Embarque A): “Libertem Lula!”. A voz estremecia na ânsia de desejo por liberdade. Er a voz de um transeunte que falava alto com os seus preciosos pensamentos. Mas perto de mim ouço alguém dizer, de forma desdenhosa, deve ser um louco. E o louco do narrador aqui se silencia para não ser interrompido em sua escrita. O cansaço batia no meu peito, mas o desejo de escrever me potencializava. Ouvia e olhava atentamente as pessoas… Pessoas bem diferentes das que eu avistei quando no ano passado eu estava a passar a madrugada no aeroporto de Milão, Itália. Ali, eu via transeuntes de todas as cores, de todas as línguas, de todas as formas, de todas as classes. Aqui, na rodoviária, percebo que apenas estão aqueles que perderam seus ônibus ou preferem ficar por aqui a ter que pagar uma estada num hotel qualquer da cidade soteropolitana.
O narrador é um observador, um canalizador de ideias, um divisor de águas na potencialidade da escrita que se é narrada, escrita interpelada por um encanto de magia que só apenas sente as pessoas que conseguem ver o outro sem que este perceba que está sendo visto. O narrador é um louco a passear pela “escritura de desastre”, pois o que se tem a contar são sempre sobras de fatos artesanalmente produzidos por pessoas que funcionam como máquinas de um tempo desértico. E por falar em tempo, eis a principal aliança do narrador que deseja escrever sem ser notado: escrever como que nada escrever, porque se paramos para pensar, na verdade, tudo se dissolve como líquidas águas de um rio que nunca para de mover-se.
Caso bem pensado, tudo já está pensado! Caso bem pensado, tudo já está consumado! Então por que nascer se temos que morrer? Por que lutar tanto para realizar os fugidios sonhos, se ninguém escapa da inevitável presença da morte, que espreita a todos nós?
O narrador sente a necessidade de trazer para a sua crônica dispersos e vagos pensamentos que se potencializam na sua inevitável escritura ferida. Depois de Auschwitz, depois de Temer, depois de Boi, o Brasil anda saindo dos trilhos! O comboio está desorientado. Sem controlo, as aves de rapina farejam carne barata para ser comercializada na praça. E o povo escaldado de tanto ser aviltado em seus direitos ainda tem tempo de defender quem sangra a ele mesmo. Que povo é esse, meu irmão?! Às vezes bate em mim uma vergonha de ter nascido neste país, mas este pensamento se consume rapidamente, porque me vem imediatamente a consciência que impede-me de acovardar-me, pois eu sei que no final das contas o mal por si só se destrói!
A banalidade do mal descaradamente invade as ruas, corrói homens e mulheres, destrói identidades, divide a população que nem percebe que está sendo usada como massa de manobra dos podres poderes da maligna corte imunda brasileira, maligna quadrilha que abre a boca e diz o que bem quer. Para eles, a lei não existe. Eles se revestem de poderes e assaltam a nação diariamente com os seus discursos inoperantes. O Boi ringe em pleno dia, o galo canta em plena tarde, o céu forma nuvens escuras mas a chuva não cai… É tempo de assombração! É tempo de alucinação! Salve-se quem puder, e se cair no mar, e não souber nadar terá que se afogar nas podres águas pelo vergonhoso mar de ruínas que estão transformando nosso país!
Agora, a inspiração se perde na estrada, e a fragmentação me vem à cabeça! Devo ou não continuar escrevendo. O cansaço me bate. Estou a escrever não mais olhando as pessoas ao meu redor, mas aos “fantasmas” que habitam em mim. A memória cruza o tempo e, distraidamente, percebe que são esses fantasmas os verdadeiros guardiães do tempo. Sem ele, o narrador perderia a sua identidade. Que identidade?! O que é identidade!? Pronto, um novo morcego sobrevoa a área da imaginação e quer atrapalhar o bom andamento desse texto (se é que há algum texto que anda para frente!). É giro pensar assim, me faz ser um atravessador, assaltante das palavras que me vem à mente. Às vezes, elas, as palavras dão uma dor de cabeça danada na gente, mas como viver sem elas, se são por elas que vivemos. Pensamos palavras, Comemos palavras, e mesmo em sonho, elas aparecem de forma difusa e louca. É nau-frágil, nau que naufragou, nau-frágil que em Lobo Antunes, romancista português, ele soube muito bem compreender. Em As naus, um Esplendor de Portugal perdeu-se no Conhecimento do Inferno. Haja Cus de Judas para revelar o dolorido passado de um país governado por um vil ditador que impôs ao seu povo um caminho cheio de conquistas e grandes perdas que não se pode caber em nenhum livro todo o trauma sofrido por todos aqueles que foram vítimas do Vampiro Salazar!!!
Outros vampiros a humanidade teve que engolir… Comer o pão que o diabo amassou é terrível! Mas se o povo soubesse o poder que ele tem, não sofreria tanto! O mundo realmente precisa de um conserto, mas enquanto o conserto não vem, ouçamos uma boa música, contemos uma boa história que possa fazer rir quem já perdeu a vontade de viver, e como este mês representa a luta contra a morte, que esta crônica ensaiada por um tecido revestido de coragem, possa ser um alimento a degustar por um leitor que jamais se ousará a dar cabo de sua vida. Deixa a vida dar cabo de si naturalmente, pois a ninguém foi dado o direito de interromper a vida, e quem assim o faz, sai desta vida sem perdão, sai desta vida sem tê-la compreendida, porque há sempre uma razão que liberta a palavra dos muros da opressão.

 

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos ardentes" - Edição 2019 - dezembro de 2019