Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

O vazio da existência

 

 

Era um tempo, não lá tão distante em que andar galopando pelos pagos, era ser um vivente livre, não havia necessidade de se saber qual riacho, qual pedra ou capão determinava a fronteira.
A caça era abundante, perdizes, lebres, tatus passeavam pela relva macia  alimentando-se com fartura. Na pequena coivara o milho crescia com as espigas cheias e bonitas.
À tarde os jovens guerreiros reuniam-se em volta do fogo de chão dentro do galpão ou embaixo de um cinamomo, onde em harmonia conversavam, recebendo informações dos mais experientes. A sapiência era passada aos mais jovens de maneira alegre, sem necessidade de uma prova para mostrar o aprendizado. Tempos diferentes. 
Lá no alto da coxilha, o peão buscava com olhos acostumados a imensidão, enxergar bem longe algumas reses pastando sólitas. Se assim fosse era sinal de que elas precisavam de auxilio. 
Os Pampas entre o Brasil, a Argentina eram sem fim. As estâncias distantes umas das outras, onde tudo era produzido ali mesmo. A vida corria entre o amanhecer e o anoitecer sem atropelos. Vivia-se de acordo com as estações do ano. A medida da altura do Sol, dizia as horas. O relógio, um artigo de luxo ou, estava na parede da sala grande ou no pulso do Senhor.
O estancieiro quase sempre rude, com maneiras tradicionais governava a esposa, os filhos, a peonada. Era exigente nas lidas campeiras, mantendo a tradição com os costumes familiares. 
Os filhos, criados na mesma lida dos peões, sem distinção. As filhas resguardadas de gracejos, eram criadas para serem donas de casa com o aprendizado de todas as prendas domésticas. Bordar, costurar, cozinhar, uma arte necessária. Ainda prestar obediência.
Os peões responsáveis pelos aperos, arreios, ágeis no manejo do laço arrebanhavam o gado, prendiam-no curral. Tinham o braço muito ágil no  laçar ou bolear o animal criado à solta no pasto. 
Cavalos, criados soltos, era só caçá-los, depois domá-los. Isso exigia muita sabedoria, paciência com certa cumplicidade entre o vaqueiro e o animal. 
Até a linguagem aproximava os moradores da Campanha, falavam um mistura de português, espanhol e, dos índios pampeanos, charruas e minuanos. 
Nas estâncias, o Senhor quase sempre um tanto indomável como os cavalos xucros, não era de muita prosa, era preciso manter a autoridade. 
Cada um sabia de suas obrigações. Buscar o gado, curar as bicheiras, domar os cavalos. Nas dias de abate, uma festa, o churrasco, arte indígena herdada dos charruas. A carne transformada em charque garantiria o alimento. As mantas, como eram chamadas, enormes bem salgadas postas para secar, recolhidas à noite, bem examinadas para ver se não havia nem um intruso. O trabalho terminava quase sempre com boa música, as cantilenas, onde cantar, dançar era constante.
As vacas já mansas garantiam o leite, o queijo. As bezerras eram criadas nos piquetes, assim quando novilhas obedeciam ao trato dos peões.
 As pedras, abundantes nos campos serviam para fazer as taipas, cercas necessárias para as lidas campeiras.
Após a ordenha, as guampas eram cheias e penduradas na dispensa. Cada um era dono de uma. Tomar o leite adoçado com mel uma delicia e bem nutritiva. O apojo, disputado tomado num copo com açúcar e canela. O leite coalhado era saboreado com marmelada. A canjica bem preparada no pilão, não podia faltar. 
O arroz descascado, também no pilão uma arte que exigia força  e paciência. No monjolo se fazia a quirera, esse movido por água, usado para moer o milho, se passasse uma noite inteira no sobe-e-desce, estava pronta  a farinha de milho.  
O monjolo ficava distante da casa de pedra, onde havia uma pequena queda d´água no meio de um capão. Um carreiro bem trilhado levava até a bica feita de costaneiras, trazia a água, jogando essa no cocho do monjolo. A mão-de-pilão batendo na gamela com o impacto da socagem  fazia o trabalho, de forma cadenciada, por horas afio. 
As crianças eram as encarregadas de cuidarem do monjolo e também do charque que estava secando no sol.  
Nessa estância, uma china faceira gostava de ir buscar a farinha, levava os galhos da erva mate já chamuscadas para serem cancheados, depois de bem triturados era só ir buscar a erva mate pronta. Ficava muito cheirosa. A moça vinha com o fardo e, não reclamava. 
Para tudo havia uma explicação.  Iara estava apaixonada pelo peão vindo lá das bandas das Misiones.  Era ele, um domador recém chegado na estância. A menina, criada pela Senhora Estancieira e sua Madrinha com todo o carinho, recebia as honras de uma filha. A mãe morrera poucos dias depois dela ter nascido, com complicações no parto. 
Estavam pensando prometê-la em casamento ao Capataz da Estância Cruz de Pedra.  Assim seria selada a amizade entre os compadres. Iara que tinha olhos azuis, meiga que nem a mãe da água e o moço de outras campanhas eram filhos únicos. Ficariam as duas famílias fortificadas na região. 
Com os laços amorosos, somar-se-iam as léguas de campos. Formaria uma grande sesmaria com grande extensão de terra.  
Mas a vida apresenta oportunidades não imaginadas. O olhar fagueiro do moço que falava quase só palavras indígenas conquistou o coração da Iara, ainda uma menina.
 Ele garboso, trajava o chiripá, sempre portando uma faca com bainha de couro cru, na cintura. Porte altivo, trazia no semblante, a herança dos primeiros habitantes destas terras Platinas.
Como ele estava em trabalhos nas coxilhas avistava a chinoca lindaça, sempre faceira dirigindo-se ao capão onde ficava o monjolo. 
Longe dos olhares fiscalizadores dos mais velhos, atraíram-se,  namoraram. A paixão aflorou, a volúpia aconteceu como sempre onde há dois amantes.
A grama verdejante, a cantiga da água, o cheiro da madressilva, o local atrativo e bonito, despertou o romance entre os dois. Ali mesmo na relva macia com o cantar dos pássaros se fizeram um do outro. Selaram um pacto de amor. 
O céu azul, tendo o quero-quero como sentinela para avisar se alguém se aproximava foram as testemunhas desse amor. Passaram-se os dias, o desejo dos jovens se transformou em um amor sem medidas, ardentes e fogosos os dois se multiplicaram. 
Com o brio do homem pampeiro foi o peão falar com o Estancieiro, sabia ele não ser fácil, pois era um forasteiro. Depois de muitas ameaças,  madrinha da moça, trouxe o passado para o presente. Quando ela, com sabedoria, lembrou dos tempos idos, onde o mesmo gesto amoroso havia sido vivido pelos dois, agora os Senhores Estancieiros. 
Enfrentaram também muitos preconceitos para viverem o amor que sentiam um pelo outro. A menina encantadora conquistara também o coração do padrinho. Ele se fez pai e não apenas o Senhor da Estância.
Concordou em dar a mão da moça ao jovem vindo de longe. Nasceu assim mais um brasileirinho, de mãe gaúcha, de pai Misioneiro.
A fraternidade entre os povos, o convívio amoroso, criou os laços de amizade e de convívio também entre pessoas de nações diferentes.  
O amor uniu dois jovens e fortaleceu a convivência  entre povos de nações diferentes.


 

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos ardentes" - Edição 2019 - dezembro de 2019