Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

Internato

 

          Eu era muito jovem, pré-adolescente. Meus pais me “internaram” no Colégio PF, pois moravam numa cidade vizinha à da escola, para cursar o antigo curso ginasial. Naquela época, os colégios de mais expressão tinham o regime de internato e eram para homens ou mulheres. Eu me vi meio assustada, mas achando natural, no meio de outras meninas que, como eu, praticamente ficava todo o período do ano escolar sem sair da escola. Isso só acontecia esporadicamente, para as visitas aos pais.
          Lembrando-me desse tempo remoto acho que o regime a que éramos submetidas se parecia com uma prisão. Tínhamos de cumprir rigorosamente as determinações das irmãs. As regras nunca podiam ser quebradas. Recebíamos um número na chegada que nos acompanhava durante todo o curso.
          De manhã íamos para a capela rezar antes mesmo do café matinal. Caminhávamos enfileiradas e em silêncio cada qual absorta em seus pensamentos. Fico imaginando o que se passava na mente daquelas jovens. Cada uma pegava seu véu num armário e o colocava na cabeça. Mulher tinha que cobrir a cabeça, em sinal de respeito, para entrar na capela. Depois da oração íamos para o café da manhã num refeitório com grandes mesas e bancos e nos sentávamos em lugares fixos.  Por conclusão, sempre perto das mesmas colegas.
          Outra vez voltávamos para a capela para assistir a missa. Nesse período de internato rezei o suficiente para o resto da minha vida.
          Da capela para a sala de aula. Ficávamos separadas das colegas externas. Não podíamos nos comunicar com elas. Éramos vistas como pessoas diferentes. Muitas vezes, fugindo ao regulamento, passávamos bilhetinhos com conversas casuais. As maiores que tinham namorado aproveitavam para enviar recadinhos.
          No contra turno das aulas dirigíamos para a banca de estudos. Fazíamos as lições, algumas recebiam aulas de piano e até recreávamos um pouco, sempre observadas por uma irmã.
          Eu me lembro de uma vez que uma das internas, nesse período ocioso, quis apanhar uma fruta das mangueiras que ficavam no fundo do quintal da escola. Num ímpeto, ela descalça um sapato e atira numa manga amarelinha. Que azar! O sapato ficou preso num galho e não voltou. Isso lhe rendeu um bom castigo.
         Voltávamos ao refeitório para o lanche vespertino e tínhamos à nossa disposição um pãozinho e uma banana. Doces e outras delícias eram trazidos de casa. Cobiçávamos o lanche de algumas colegas e eu, por vezes, sentia a boca salivar ao ver um mamãozinho recheado com doce de leite que uma das meninas comia.
          Nossos banhos não eram diários. Entrávamos em um banheiro com três chuveiros de cada lado. Uma irmã nos acompanhava. Ela batia uma palma: tirávamos a roupa. Outra palma: colocávamos uma camisola de banho com a qual teríamos de nos banhar. Nessa hora nos rebelávamos. Banhávamos nuas mesmo. A água era fria. Tinha apenas uma banheira com chuveiro quente. Mas esse era apenas para a aluna que estivesse doente e uma taxa era cobrada pelo uso. Outra palma: abríamos a torneira e mais outra: fechávamos a água.
          Vinte horas. Mais orações na capela antes de irmos para aos dormitórios. Naquela época os piolhos estavam em ação. Então fazíamos uma fila à porta do quarto. Uma das irmãs sentada num banco, com um pano branco no colo, revistava cada cabeça à medida que nos aproximávamos.
          Só então éramos liberadas para o dormitório. Ficávamos em pé perto de nossas camas. Novamente as palmas. Batia uma: tirávamos o uniforme para colocar a camisola. Um detalhe: colocávamos primeiro a camisola e nos despíamos do uniforme gradativamente sem ver ou mostrar os nossos corpos. Outra palma era batida e nos deitávamos. Terminava assim um dia, para no outro a rotina recomeçar.
          Durante os quatro anos do curso ginasial, minha vida foi  metódica, calculada, cobrada. O estranho é que quando me recordo de tudo, vejo que aqueles anos me pareciam naturais. Também era a vida que eu conhecia. Aí eu penso: será que nossos atuais adolescentes se submeteriam a um regime interno para estudar? 
          Inimaginável.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Novembro de 2016