Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

A magia de uma tarde de Domingo

 

 

        

Um domingo à tarde de uma semana qualquer, chovia, uma garoa fina estava frio, a nostalgia levou a família a dar uma pernada, nos os tempos idos. Como o tempo é só uma questão de organização, todos, mesmo os de menos idade estiveram presentes. Cada um, participando a seu modo, vivendo o momento, até caçando junto, ou só vivenciando os fatos.
Sentados ao redor do fogão a lenha, a família contava causos. As crianças sentadas na caixa de lenha, atrás do fogão, saboreavam o pinhão. Foi sapecado na chapa. Depois, batido com o martelo, para não fazer mal. Como era inverno e, se faz preciso a precaução com a gripe, cada um depois de descascado batido era lambuzado no mel. Os pinhões foram colhidos na própria propriedade. Os pinheiros plantados há 40 anos quando os filhos fizeram 40 dias. O pinheiro da propriedade da família produzia um pinhão pra lá de especial.
O pai, sempre com seus causos, contou de quando moravam no Rio Grande do Sul, no Planalto Médio, iam caçar perdizes, nas regiões da Campanha, nas encostas dos lajeados.
Levantavam antes de qualquer sinal da aurora. Escurão ainda, no primeiro pisar no assoalho de madeira, antes mesmo dele estralar, o cachorro perdigueiro já dava sinal de estar atento. Não parava mais de latir, até ser solto da soga, a qual representava o seu cativeiro. 
Acendiam o fogo, para quando a mãe com as crianças menores levantasse, a cozinha estivesse quentinha. Uma forma de carinho. Num tempo de poucas manifestações amorosas, era um apreço especial.
Quando o dia clareava os caçadores estavam distantes. Caminhavam mais de 15 Km para chegarem no campo. Era preciso autorização prévia do fazendeiro, mesmo sendo a caça liberada.  
O prazer de uma boa caçada compensava o frio, a caminhada. Espreitar a perdiz. Esperar ela levantar voo, com um tiro certeiro garantir um jantar saboroso fazia parte do Programa de Domingo. Não se pode esquecer que a caçada faz parte do inconsciente Coletivo da Humanidade. A caça foi à responsável pela sobrevivência, pela organização social e até de certa forma pelo aperfeiçoamento da linguagem. 
O trabalho do cão/perdigueiro era a de amarrar a caça, depois ir buscar a ave, onde ela caia. Trazia abocanhada, sem mastigar. Depositava aos pés do caçador. Ou esperava até o caçador pegar a perdiz da sua boca. Eram cães ensinados, amigos e indispensáveis.
O pai, com os filhos mais velhos ou com os amigos, caçava até a meia tarde. Então se sentavam no capão, em cima de uma árvore derrubada em algum temporal. Era a hora do almoço dos caçadores. No local se alimentavam com o pão, salame e queijo, que tinham levado, descansavam um pouco, tomavam um bom vinho trazido no cantil. Iniciavam o caminho de volta. 
Para a sobremesa sempre havia frutas silvestres araticum, amoras, sete capote. Se tivessem sorte, passassem por uma tapera encontravam mexericas, laranjas. Ao entardecer, chegavam em casa. A cartucheira quase sempre voltava sem nenhum cartucho carregado.
Limpar as aves, trazidas penduradas pelo pescoço, era feita uma laçada, num tento bem resistente. Quando elas levantavam voo do capão, recebiam o tiro quase sempre na parte traseira. Depenar, deixá-las prontas para serem consumidas, não era muito difícil, pois a prática fazia parte do programa domingueiro. 
Enquanto os homens, guardavam os apetrechos da caça, os meninos mais crescidos, ou as meninas maiores, tinham o trabalho de limpar a caça, trazida perdizes, pombas, às vezes um jacu. Depenar era no tanque de lavar roupa, próximo da casa. Esse era feito encima de um filete de água. O tanque estava sempre cheio de água limpa, trazida por uma bica de madeira ou por uma taquara-açu. A água era corrente, no inverno estava sempre quentinha. 
 Enquanto isso a mãe mexia a polenta. Já estava sendo preparada desde à tarde para ser brustolada. Fazia também mais uma, começada na boca da noite para ser degustada com o molho ou com leite. Usavam um tacho de ferro, colocado direto no fogo, tirando as rodinhas da chapa e, ali assentavam o tachinho da polenta, assim chamado. A polenta era mexida com uma pá de madeira, quanto mais à pá virava e revirava, melhor ficava. Era preciso mais ou menos uma hora de cozinhada. Com as perdizes fritas ou algumas vezes recheada faziam a festa. A salada, colhida na roça, o piçacam, temperada com vinagre e torresmo, feito na hora com a banha da maninha, tirada  da barriga do porco.
Se sobrasse, quando a caça era abundante, guardavam fritinha no meio da banha de porco numa lata bem fechada. 
Tomavam um banho quente. A água aquecida no fogão e colocada no chuveiro de lata. Esse era erguido com uma soga, presa por uma argola. Abria-se a torneira para água ou puxava-se uma cordinha. A roupa molhada era deixada no tanque para ser lavada. O chapéu pendurado na despensa, para secar na sombra assim não deformar. Quando era mais frio, usavam a capa, essa era também estendida, porém no galpão pelo tamanho e, para pingar a água acumulada, juntamente com as botas, todas embarradas. 
Depois da janta, a mesa era sinal de Comunhão entre a família, todos nela se assentavam. Não faltava um bom vinho, com uma boa conversa. Tinham relatado várias vezes às peripécias da caçada, faziam até os jeitos das aves ao serem abatidas. Imitavam o tiro errado. Aquele certeiro. Depois todos iam dormir para trabalharem a semana toda, esperando o próximo Domingo.  A polenta sobrada era brustelada na chapa do fogão, na manhã seguinte. 
E, assim a tarde de inverno com o mesmo chuvisco dos Pampas, de lembranças em lembranças passava rápida. Eram causos vividos como se estivessem caçando, naquele momento,
- Que cheirinho gostoso!!  Quero comer uma perdiz no molho. 
- Não vai ter uma polenta sapecada??? Tanta era a realidade com que a história era revivida.
- Essa semana prometo pra vocês vou ao Mercado, afirmou o dono da casa, se encontrar perdizes, compro algumas, se não uma boa codorna, quebra o galho. À noite faremos também uma festa. Os tempos são outros. A caça se faz de forma diferente.
O chimarrão ou mate doce também rodava tranquilamente. Riam muito,  conversavam bastante. Essas conversas, ao redor do fogão, traziam para o presente, os patriarcas das famílias, como se ainda estivessem todos juntos. Os costumes não caiam no esquecimento, a união era fortalecida. Havia diálogo, carinho e criavam-se raízes. 
A criançada torcia para que em outro domingo tivesse frio e chuvisco outra vez.  Outros causos seriam contados.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Causos e contos do cotitidiano" - Edição 2019 - Março de 2020