André Luiz de Oliveira Pinheiro
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Primeiro dia, sem tempo...

 

        

           Hoje acordei, um pouco mais tarde. Costumo acordar sempre num horário sem relógio... Bem no crepúsculo do amanhecer. Hoje, no entanto, por conta das comemorações do "ano novo", ressurgi mais tarde.
          Novo ano, tudo velho. Na realidade fria e calculista, nada mudou. Posso ter desejado mudanças, feito promessas, pulado sete ondas, ou quase me afogado nelas... Mas nada mudou. Apenas no calendário a nova foto na folhinha de dois mil e vinte, ganha na padaria do seu "Manuel".
          É certo, está lá o dia “PRIMEIRO DE JANEIRO DE 2020”. Mas se fosse o dia trezentos e sessenta e seis ou 5772, ou mesmo 4,5 bilhões de anos e mais um dia... Nada mudaria. O mesmo sol, o mesmo azul, os mesmo olhos embaçados, o mesmo bocejar, e o cônjuge ao nosso lado (ou seria conge?), mesmos filhos, ou a mesma solidão...
            Bem, convencionalmente, estamos no ano novo. E aquela face antiga, aquele carro velho, aquela bicicleta de pneu careca, aquela mania de tirar meleca, e os antigos medos...? Nossos secretos segredos, aquela fé tirana, aquela mesma cama, talvez na mesma casa, naquele mesmo bairro, daquele município, e no mesmo estado, deste imenso país, tudo sem princípio... "Imoral, ilegal ou engorda?"
            Daqui a pouco tomarei o meu café da manhã, suco verde, pão sem glúten, uns ovinhos mexidos, talvez, umas conversas fiadas com a família... Certamente, nem todos agirão assim, mas sei que muitos, antes vão tentar excretar o ano velho pela privada. Rotina demarcada pelas peristalses da vida, que nos expulsa pouco a pouco dela, ainda bem vagarosamente e sem hora marcada. Mas as nossas necessidades fisiológicas ainda têm uns horários mais ou menos fixos, nessa nossa jornada...
            Mais tarde, quem sabe, estarei voltando a rotina, esta ditadora tão singela, que dificilmente é derrubada, destituído o seu poder. Será necessário a sua intervenção. Senão, tudo ficaria de lado, as contas pra pagar, o conserto da pia da cozinha, o planejamento das férias, a louça pra lavar do "Réveillon", o cocô da mini-cadela pra catar, as plantas pra molhar, o quintal pra varrer... Chega, chega, chega!!! Não aguento mais, eu me curvo a você, rotina, e te servirei... Nos próximos trezentos e sessenta e cinco dias... Caraca!!! Esse ano é bissexto! Mais um dia...
            É gente, vamos em frente, que atrás vem gente... E que possamos ter uma rotina mais camarada, menos despótica. E que neste ano esqueçamos um pouco os calendários, e lembremos mais dos aniversários, dos amigos, dos amores, dos filhos, das famílias, dos desabrigados, dos doentes, dos esquecidos nas sarjetas, hospitais, asilos... Dos na solidão... Feliz 2020!

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Causos e contos do cotitidiano" - Edição 2019 - Março de 2020