Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

 

Foi assim

                

           Até onde minha memória pode alcançar sempre me senti e me vi cantora. Dona de uma voz bonita e afinada arrancava aplausos quando me apresentava. Fui crescendo e uma estrada bifurcada surgiu a minha frente: ser cantora seguindo minha intuição ou advogada seguindo a intuição do meu pai.
          Fui parar numa Faculdade de Direito e me formei. Sabia de antemão que essa não seria uma profissão para mim. Eu era artista da arte de cantar. Aos atropelos com meu pai, ao contrário de minha mãe que me apoiava, comecei a abraçar a sonhada carreira. Aceitava os convites para concertos, me apresentar em festas e, aos poucos, me tornei conhecida.
          A vida me preparava outra faceta.
          Eu ainda era muito jovem quando minha mãe adoeceu. A princípio não percebia a gravidade da situação. Mas, ao vê-la incapaz de andar, fui entendendo que aquilo seria para sempre e que teríamos, minha família e eu, de aceitar.
          Mesmo na cadeira de rodas, minha mãe assistia às minhas apresentações. Posso dizer que ela foi minha maior fã.
          Seu estado de saúde foi gradativamente se agravando. Até que a vi acamada. Como eu era a única filha, dediquei várias horas de minha vida a cuidar de mamãe.
          Foram longos vinte e cinco anos.  As idas e vindas ao médico e hospital se tornaram uma rotina.
          Até que um dia, no hospital, achando o estado de mamãe desesperador, pedi a Deus que a livrasse do sofrimento. Fui para casa me deitar e, de madrugada, algo inusitado aconteceu. Acordei eufórica e me vi atrapalhada não distinguindo se vivia um sonho ou realidade. O fato era real. Eu estava leve, em paz, rindo sem saber do quê. Senti, então, a companhia dos meus avós já falecidos. Na verdade, eu os vi. Tive medo. Meu avô ria de mim, pois deve ter se lembrado de que eu falava que amava a todos, mas que, depois de mortos, não voltassem. No meio deles encontrava-se outro vulto que, da cintura para baixo, desprendia muita luz. Aos poucos a visão se foi.
          O telefone tocou. Atendi. Sabia que ali estava a notícia da morte de mamãe, pois um grande aperto atingiu meu peito tão logo os vultos desapareceram.
          Levantei-me calmamente, me sentindo bem e fui avisar meu pai e o restante da família.
          Continuei tranquila durante o velório. Cheguei a ouvir de pessoas conhecidas, que minha ficha ainda não tinha caído. Mas eu estava consciente.
          A doença de mamãe me serviu de muito aprendizado. Sua morte foi suave para mim, não deixando angústia ou desalento. Tinha a convicção de que ela, literalmente, descansava para sempre.
          Quando me pego a recordar todo esse tempo, não o faço com desespero, mas com uma paz que de mim emana. Conforto-me com a certeza de tê-la amado em vida conservando para sempre a sua memória.
          Passei por um casamento que não deu certo. Tive também um companheiro, mas o ciclo, mais uma vez, terminou. Estou morando a alguns quilômetros de minha terra natal. Foi uma mudança radical, porém planejada, desejada, acontecida.
          Hoje trabalho a perspectiva do cotidiano.

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos Livres" - Edição 2019 - Abril de 2019