Rosicler Antoniácomi Alves Gomes
Ponta Grossa / PR

 

 

Regis Victoria

                

 

Eu sempre senti muita falta dela. Era um sentimento que consumia a maior parte de meus momentos comigo mesma. Nem o sono atormentado, que consumia o restante desses momentos, conseguia me fazer desligar totalmente da memória mais nítida que eu tinha da minha infância e pré-adolescência. Ela estava lá.
Morena saudável, de formas arredondadas, cabelos ondulados, porque ela se esmerava em domar os caracóis à custa de grandes “bobs” e secador de cabelos. Sorriso largo frequentemente, mas também enigmático quando me analisava em silêncio, pousando em mim os olhos negros doces, que espelhavam o brilho profundo que o conhecimento calado da natureza humana pode dar a um olhar complacente.
Era uns quatro anos mais velha que eu. Gostava de brincar de princesas, de divas, de refinadas mademoiselles, e se empenhava em me fazer crer que eu era uma delas. Às vezes eu me irritava com essa determinação. Nem sempre eu estava disposta a ser uma diva, e dizia que aquela vez eu seria somente a secretária dela – eu gostava de máquinas de escrever, e qualquer caixa de papelão podia virar uma, com os necessários desenhos de círculos, figurando as teclas. Ela deixava. Mas eu tinha que ser uma secretária refinada. Saltos altos, cabelos presos, e o traje de algum costureiro francês ou italiano, apenas imaginado e descrito com os mais sutis detalhes. Nosso mundo principesco realizava-se de modo concreto em uma pedreira abandonada que existia nas proximidades da vila. Escadarias suntuosas, terraços, jardins de inverno, áticos, passagens secretas que levavam aos porões com tesouros, eram os ambientes imaginários que dos olhos dela minha mente bebia, e saciava-se com a sua fantasia. E nada de caixa de papelão. Rapidamente ela descrevia os detalhes da minha máquina de escrever, acomodada em um platô, que era a escrivaninha. Eu não precisava virar a cabeça e olhar, bastava mergulhar nos olhos dela para ver tudo aquilo.
Escolheu para mim um nome: Regis Victoria, que eu não me atreveria a substituir por outro.  Apenas argumentei que seria mais apropriado Vitória Regina. Olhar complacente. “Está bem”, mas de vez em quando me chamava de Vitória Régia, para que eu retrucasse e afirmasse que era Vitória Regina. Ria e me chamava então de Regis Victoria. E, complacente: “Você não entende, porque é Latim”. 
Eu não entendia mesmo. Não fazia sentido. Menos ainda, quando efetivamente estudei Latim, pois Vitória do Rei ainda não fazia sentido. Provavelmente ela apenas gostava de combinar Regis com Vitória, que é o nome dela. Era uma lei dela, que eu obedecia, e isso fazia sentido.
Fazia cada vez mais sentido, especialmente depois que a perdi. Aos dezesseis, não suportou mais a vida que levava morando com a irmã submissa ao cunhado hipócrita, que ostentava figura paterna, porém media todas as suas formas, sentado como um “paxá”, enquanto ela cumpria as tarefas domésticas.  Revoltou-se, falou tudo. A irmã submissa engoliu entre lágrimas a declaração de “inocente caluniado” do hipócrita.
Rua.  Foi para a capital, “trabalhar”. Eu sabia bem qual era o trabalho que o pérfido lhe arranjara, embora jamais me permitisse a elaboração mental desse saber indesejado. Minha Diva, minha Rainha, que me fizera princesa... uma serva dos homens mais ignóbeis, coberta de injúrias. 
Não sei como cresci. A vida passou por mim, como morta-viva que me tornei. Autômato apenas seguindo adiante. Artesã e vendedora ambulante de bijuterias - qualquer coisa que pudesse me fazer andar para frente, arrastando o coração que não queria prosseguir. E me lembravam dela. As bijuterias. Aquelas matérias brutas e sem valor tornadas sonho e fantasia de fulgor reluzente. Mas eu ainda não tinha sofrido a maior dor.
Reconheci imediatamente a mulher que se aproximou de minha tenda, na feira, apesar dos sulcos que o sofrimento lhe impusera às faces. Trazia nas mãos uma urna de prata cravejada de rubis, que me entregou em silêncio. Tinha os olhos tão submissos ao remorso, que dispensavam palavras para anunciar-me a morte da irmã que amara covardemente, e por quem fora pronunciada por força de testamento a entregar-me suas cinzas por herança.  Meu coração se apertou dolorosamente. Li a inscrição diametral gravada no bojo: “O que sempre pertenceu a Regis Victoria, com amor eterno.”
Voltei a enxergar. Enxerguei-me por dentro como nunca antes enxergara. Soube de repente o que Vitória sempre soube de mim. E a forma como me amara. Enxerguei a vida que me fora roubada.
Abandonei a tenda com as bijuterias inúteis. Abracei a urna, e virei as costas para o passado. Sonhos e fantasias de Vitória, que eu via em seu olhar complacente, eram as metáforas de minha realidade, que eu ainda não podia enxergar com meus próprios olhos.
Regis Victória – porque Heleninha não faz mais nenhum sentido – terá que ser aceita, e ser vivida plenamente, e ser sentida como Vitoria sentiu até às cinzas.  E não amar ninguém senão ela, até às próprias cinzas.

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos Livres" - Edição 2019 - Abril de 2019