João Paulo Hergesel
Alumínio / SP

 

 

Tempestade da madrugada

 

           

          Às vezes, imagino como será quando meus lábios forem tocados pelos lábios de uma garota. Dizem que essas coisas acontecem, porém nunca comigo. Tenho dezesseis e a sensação de ser beijado apenas em sonho. Às vezes, imagino como será quando meus lábios forem tocados pelos lábios de uma garota. Outras, vou além e imagino como seria se meus lábios fossem tocados pelos lábios de um garoto.

...

Tive um sonho com ele. Confesso que não foi o primeiro, mas foi o único que me fez sentir bem. Enquanto uma tempestade de outono caía no mundo real, por alguma razão eu sentia a insuportável dor aguda de um torcicolo na história imaginária que meu subconsciente criava.
Sentado numa cadeira giratória que não sei a quem nem a onde pertencia, notei estar sem camiseta; vestia apenas um short preto, a mesma peça de roupa com a qual fui me deitar na noite anterior. O outono não me impede de dormir bem à vontade, enquanto eu tiver cobertores para me proteger.
No sonho, entretanto, esse meu traje sofisticado possibilitava a entrada de ar para todas as áreas do corpo. Tudo era tão real que eu conseguia sentir minuciosamente o frio da neblina que me circundava; a derme se arrepiava por inteira, os pés ameaçavam se arroxear e os mamilos se contraíam. Talvez fosse por causa do clima que a dor no pescoço não demonstrava que passaria tão cedo.
Tentei fazer uma espécie de automassagem, mas os dedos pareciam desajeitados, não se entendiam nem entre si próprios. Pensei que a dor seria eterna, mas logo percebi quão enganado eu estava. Mansamente, alguém veio por trás e, sem dizer uma única palavra, colocou as mãos quentes sobre as minhas, afastando-as de perto do pescoço.
Não vi o rosto; apenas os braços quando eles me rodearam e tocaram involuntariamente, mas cariciosamente, em meu peito desnudo. No entanto, não foi necessário ficar olho a olho para saber quem era o dono daqueles membros superiores; consegui reconhecer apenas pela marcante munhequeira vermelha e preta que somente ele, dentre todas as pessoas que eu conheço, usava como adorno no pulso esquerdo.
— Juliano — disse ele com a voz aveludada, cujas ondas sonoras bailaram ao redor da minha cabeça e seguiram girando até meu nome ser penetrado fonema a fonema em cada um dos ouvidos. — Juliano, eu o confortarei.
Pude, então, sentir as afáveis mãos adolescentes, mais brandas em comparação às minhas, me confortarem pouco a pouco a começar pela nuca. A espessura da pele, a temperatura da palma, a forma carinhosa com a qual ele me esfregava delicadamente o colo, o calor do hálito me amornando as orelhas... A essa altura já não era mais o frio que me provocava arrepios.
Isso, porém, não passou de uma massagem. Não passou de um sonho. Ainda assim, ao acordar percebi que preferia continuar dormindo. E a ereção matutina, derivada de minha louca excitação, confirmava que aquela tempestuosa madrugada fora mais do que especial para mim.
Fato: a cadeira giratória do sonho estava sendo uma cadeira elétrica para mim.
Problema: talvez eu gostasse de levar choques.

O invasor de sonhos era justamente o irmão mais novo da minha melhor amiga. Destaque aos lados de um triângulo amarelo-tostado: amiga loura; irmão louro da amiga; os louros de uma descoberta sobre mim mesmo. Senti um pouco de medo, pois desse triângulo não conseguia calcular nem seno, nem cosseno, nem tangente.
Independentemente das dúvidas, segui normalmente com o dia, que também se seguiu normalmente: banho; uniforme; café da manhã; escola; bate-papo com os colegas; pensamentos ocultados por sorrisos alarmantes; volta para casa; almoço. O consuetudinário, todavia, se rompeu com o chamado urgente de Viviane.
Fui à sua casa, ao seu quarto, à sua cama. Separados por uma almofada cor-de-rosa — e alguns segredos que permaneciam secretos —, ela me mostrava o álbum de fotos da última viagem ao Rio de Janeiro com a família.
— Minha família é esquisita, não?
— Depende, Vivi. Depende de qual sua concepção de esquisito.
Ela me olhou esquisito e mudou o comentário.
— Repare na sunga ridícula que meu irmão decidiu usar... Só podia ser coisa do Vinícius mesmo.
Por fora, sorri; por dentro, gelei. O nome Vinícius nunca havia soado tão vibrante como naquele instante. Pela milésima vez naquele dia, a imagem do sonho me veio à mente; pela primeira vez, consegui visualizar além dos braços.
Meu riso obteve uma outra interpretação que fez Viviane fechar instantaneamente o álbum e ignorar a presença da almofada, resultando num encontro inesperado e desajeitado de duas bocas que há tanto já se falavam.
Posso não saber exatamente o que é amor, o que é paixão. Ainda assim, tenho a certeza de que gosto de estar com Vivi. Gosto demais. Isso me faz surgir um fato e um problema.
Fato: a atração que sinto por ela é grande.
Problema: a atração que sinto pelo irmão dela é ainda maior.

Passado o beijo, eu tive a oportunidade de escolher entre revelar a verdade ou não. Então, confessei que aquele foi meu primeiro beijo. Só. Assumir minha homossexualidade perante a sociedade seria sinônimo de declarar suicídio; portanto, ainda tinha que me preparar para isso. Optei por namorá-la.
Com uma aliança de compromisso no dedo, passei a frequentar mais a casa dela e, consequentemente, me tornei o maior amigo de Vinícius. Várias foram as vezes que pensei em agir por impulso, porém o medo me cala e acabo me contentando apenas por tê-lo ao meu lado e, às vezes, nos sonhos.
Fato: manter minha orientação sexual em sigilo evita minha morte.

Conclusão: não sei se sou totalmente feliz por estar vivo.


 
 
Poema publicado no livro "Contos de Outono"- Edição Especial - Junho de 2017