Rhadra Calache
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Devaneio

 

           

         Sensação estranha essa de estar ouvindo o relógio da cozinha, mas estar no sofá olhando para o relógio da sala, parado. Fico com a impressão do tempo que passa e eu não vejo. A bicicleta parada, as roupas penduradas dentro de casa, sem balançar com o vento lá fora. Ouço o tempo passando, ouço o vento soprando. Só ouço. Não vejo. Não falo. Só penso. Não sinto o toque. Não sinto o cheiro. Só ouço. Uma nostalgia estranha, mil lembranças, mil lugares internos revisitados sem mover um músculo sequer, sem sair desse lugar estático, o sofá da sala. Viajo no tempo e na imaginação, mas continuo aqui. A mente inquieta, as lembranças ativas, o corpo largado. Continuo olhando para relógio da sala com um som que não lhe pertence. Ele também parece me olhar, com seu pêndulo dourado reluzente, como quem não se conforma de ver minha estagnação. Ah, se ele pudesse andar, correr, voar, sair dali, tirar o atraso das horas que marcou e que nunca lhe pertenceram, como não lhe pertence o som que parece produzir. A canoa no quadro, parada. O riacho, igualmente parado. As chamas das caravelas na imagem dos Lusíadas, estáticas. As velas infladas também estáticas. Só minha mente, minhas lembranças e o relógio da cozinha parecem ativos. E o vento lá fora.
         O cabelo ainda um pouco molhado entre os meus dedos. Um braço do sofá sustenta um braço meu. Que sustenta a cabeça. Que não se sustenta sozinha porque pesam muito as lembranças. A mente inquieta que não sou capaz de domar. Nem quero, nesse momento. Deixo que tudo aconteça. Vontade zero de decidir qualquer coisa. Sinto o sangue pulsando nas veias.          Nunca tive medo da morte. Sempre tive uma coisa meio que de conforto, uma sensação que sempre me manteve consolada. Uma coisa assim de que se eu morresse a qualquer instante, estaria tudo bem. Não é que eu não tenha planos, que não queira visitar lugares, que não queira conhecer pessoas. Eu quero. Sempre quis. Mas nunca tive essa ideia de interrupção ou de perda que as pessoas costumam ter. Nunca desejei a morte, apenas nunca tive medo, ela nunca foi um problema para mim. Mas eu estou viva, me sinto viva, não sinto a morte rondando. Não fugiria se ela viesse, mas sei que ela não vem. Não agora. Um dia. Não hoje. E vai estar tudo bem. Não vou me negar, não vou resistir. Só não é hoje. Não fico feliz nem triste por isso. Só fico aqui. Ouço o vento lá fora. Ouço o relógio da cozinha. O da sala parado. O cheiro da roupa limpa traz uma sensação boa. De vida. Ouço vozes dos vizinhos, ouço o elevador. Olho para o lado. Perto do meu joelho, Sob o sol da Toscana. Tantos sonhos condensados num livrinho tão pequeno. Um mundo inteiro que se abre cada vez que volto a ler. Mais adiante as bebidas, o vinho do Porto. Lembro de Lisboa. Saudade, para mim, tem nome: Lisboa. Lembranças tão presentes que sinto perfeitamente como se estivesse lá quando fecho os olhos. O quarto, a sala, a cozinha... o amolador de alicates tocando flauta enquanto anda as ruas empurrando a bicicleta. Os cachorros latindo. Os vizinhos barulhentos. Mas sobretudo a paz. O céu azul, o céu de nuvens carregadas, o frio cortante e delicioso, o vento que quase me carrega. A paz. Saudade. Saudade de um lugar ao qual eu não pertenço, mas que me tem de alguma forma. Que novidade? Não pertenço nem ao lugar onde nasci... não me sinto pertencendo a lugar nenhum. Mas Lisboa me tem de alguma forma. Tantos sonhos condensados numa cidade tão pequena. Não vivi só coisas boas ali, mas não é só de coisas boas que é feito o que sinto. A matéria dos sonhos e da saudade não é matéria. Estranha condição de coisas que são sem ser. E que se tornam inesquecíveis ainda assim. Impressionante mania de deixar marcas sem tocar. De fazer parte de nós sem nunca ter sido.
         A canoa e o riacho ainda parados no quadro. O relógio ainda parado, mas como se estivesse funcionando, com um barulho que não é seu. O vento lá fora parou de soprar.

 


 
 
Poema publicado no livro "Contos de Outono"- Edição Especial - Junho de 2017