Wagner Dias de Sousa
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Terra dos justos

 

           Voltava para casa naquele fatídico dia 23 de dezembro do ano de dois mil e não me lembro; fui demitido depois de 25 anos de dedicação. Recebi um comunicado curto e grosso: que a partir daquela data eu não fazia mais parte do quadro funcional da empresa. E olha que o Diretor se dizia meu amigo. Mas, fazer o quê? O remédio foi esperar acabar o recesso natalino para formalizar o meu desligamento. Belo presente de Natal!
            Ao chegar a casa, liguei a TV para me distrair. Começa o telejornal. O noticioso só fez aumentar a minha angústia: Desemprego e pobreza crescentes, a saúde enferma, a segurança pública dando sinais de falência, servidores estaduais sem receber salário, e parlamentar encarcerado por corrupção usufruindo de regalias. Comecei a me sentir um nada, um zero à esquerda, mais um na estatística dos desempregados, cuja taxa o governo afirmava estar em declínio. Talvez se referisse à Escandinávia.
Para não aumentar a sensação de impotência diante dos acontecimentos, desliguei a TV e fui meditar. Meditei tão profundamente, que acabei dormindo. E esse sono me levou para um lugar nonsense. Despertei num ambiente cujo ar era diferente, suave, despoluído. Os raios do sol nascente anunciavam o despertar de um lindo dia. Olhei pela janela e vi um florido jardim, com pássaros, borboletas e cigarras a cantar. Um ambiente bucólico. Achei tudo muito estranho, pois morava num sobrado suburbano, periferia de uma grande e poluída cidade do sudeste brasileiro. Desconfiado de que tudo aquilo não passava de um delírio, eu me belisquei pela primeira vez. Estranhamente era tudo realidade. Fui ao banheiro, olhei no espelho e a minha cara estava lá. Olhei no calendário, era sete de janeiro; “nossa! O tempo passou rápido. Nem senti!” – exclamei perplexo. Lembrei que deveria ir à empresa assinar a minha rescisão. Então me arrumei e saí para resolver o problema. No caminho até a parada de ônibus, fui saudado com um sonoro bom dia por uma senhora que nunca havia visto na vida. Respondi, meio sem jeito. Já dentro do coletivo, deparei-me com algo que há muito não registrava: quase todos os passageiros confortavelmente sentados. No máximo, havia dez pessoas em pé. Ninguém reclamando da vida. Alguns lendo livros, outros estudando.
            Chegando ao antigo emprego, fui surpreendentemente recebido pelo Diretor - aquele que se dizia meu amigo, mas permitiu a minha demissão. Ele se desculpou pelo ocorrido, disse que a empresa passava por uma reestruturação, e blá, blá, blá. Deu-me uma carta de recomendação e pediu para que me apresentasse na Empresa de um amigo seu, que estava necessitando de um profissional experiente e dedicado. “O salário é bom” – disse ele.
            Parti para a tal empresa, onde fui bem recebido pelo Diretor de Rh, que me entrevistou e pediu o meu currículo. Passados alguns dias, recebi o comunicado de que estava admitido. Realmente a empresa era muito boa. Além de bom salário, concedia para seus funcionários ótima qualidade de vida, oportunidade de estudo e plano de carreira. Não poderia ter acontecido algo melhor em minha vida. Trabalhar num lugar que preza a meritocracia. Pela segunda vez me dei um beliscão para ver se aquilo era mesmo verdade. Estava tudo certo.
            Chego a casa, após mais um dia de trabalho e estudos. Ligo a TV e o noticiário informa que a violência estava diminuindo, a miséria erradicada. O novo governo aderiu ao programa internacional para zerar a miséria do mundo. Foram estabelecidas metas para cada país reduzir a pobreza e a miséria em seus domínios, além da mútua contribuição. O País com melhor PIB forneceria roupas e mantimentos para aqueles de menor desenvolvimento. Era o nascimento do FID - Fundo Internacional de Doações.    Belisquei-me pela terceira vez. Percebi, definitivamente, que não se tratava de um sonho.
No dia seguinte, já no trabalho, virei para minha colega e perguntei: “Que mundo é esse transformado em tão curto espaço de tempo?” Ela me respondeu, sorrindo:
- Você foi teletransportado para a terra dos justos. Aqui só pisa quem é honesto, tem noção dos seus direitos e dos seus deveres. O povo daqui fez por onde merecer. Estudou, se educou e não perdeu a esperança. Foi para as ruas, protestou de maneira civilizada, porém enérgica. Exigiu mudança, obrigou o poder legislativo a fazer valer a Lei. O resultado? Começou a faxina ética no alto da pirâmide; Prenderam as autoridades corruptas, que surrupiavam o dinheiro público. E o melhor você não sabe: foi extinta a prisão domiciliar. Todos foram encarcerados. Lugar de ladrão é na cadeia, em regime fechado, trabalhando na lavoura para se sustentar, até cumprir toda a pena. Só assim conseguiu-se botar ordem na casa. Governante, agora, tem que prestar contas à população, semestralmente. E se tiver um centavo gasto sem justificativa, é demitido sumariamente, sendo convocada nova eleição para eleger o substituto.
Ninguém se atreve mais a roubar ninguém. Por isso que sobrou mais dinheiro para educação e não há mais uma criança fora da escola. A bandidagem murchou. Há lugares em que é possível pernoitar com as janelas abertas e a porta destrancada.
- Ah, tá! – respondi admirado.
Foi então que percebi a vantagem de ser honesto. Mesmo que, aparentemente, ninguém esteja nos vendo.

 

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos" - Junho de 2018