Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Receita de fazer bandido

 

        

Eu era da equipe de direção da escola. Uma professora teve que tirar licença para cirurgia cardíaca e não mandaram substituta. Resolvi assumir aquela turma de terceira série nas minhas tardes. Eram alunos rebeldes, entre doze e treze anos.

Logo no primeiro dia, o Cristian me chamou a atenção; fazia força para isso. Ele implicava com os outros, despenteava as meninas e não ligava para repreensões. Uma tarde, logo depois de retornar do recreio, pediu-me para ir ao banheiro. Neguei, já que tinha vindo lá de baixo há poucos minutos. Por baixo da carteira, ele derramou um tubo de cola branca nas mãos e modelou luvas que vinham até os punhos. Aquela mãos bem morenas, incrivelmente fantasmagóricas. Mostrou-me rindo e pediu para lavá-las. Não briguei. Mandei que descesse e  se limpasse. Como demorou a voltar, fui atrás. Ele estava de pé, na secretaria, levando um esculacho da diretora. Ela me disse que ele ficaria ali. Respondi que preferia que voltasse para a sala, para não perder aula e que eu resolveria o caso  com ele.

Subimos e não comentei sobre o acontecido. Apenas coloquei uma carteira colada à minha mesa e pedi que se mudasse para lá.
Ali tive a oportunidade de conversar mais com ele, olhava seus cadernos, explicava o que não entendia. Ele tinha uma irmã na turma, a Renata.  Ela tinha um bom comportamento  e era dedicada aos estudos. Soube que eram quatro irmãos, cada um de mãe diferente. O pai assumia o filho e mandava a mulher embora. Sem condições de assumi-los, elas deixavam. Três vinham ver os filhos com frequência, mas a do Cristian  nunca mais apareceu.

A mãe de Renata foi vê-la na escola. Ela desceu para encontrá-la e voltou exultante: “Ganhei um relógio!” - Cristian começou a zombar da menina, dizendo que o presente custou 1,99 no camelô. Tanto implicou, que a menina chorou. Briguei com ele, mas vi muita mágoa boiando em seus olhos. Ele não tinha uma mãe para lhe dar um presente de 1,99.  A seguir me disse:
“ Fessora, eu disse pro meu pai que não quero estudá, quero sê bandido. Sabe o que ele mi disse? Que pra sê bandido , eu tenho que estudá, pros parcêro num me passá a perna.”
 – falei que o pai tinha razão e que, com estudo, ele teria mais opções na vida. Era bonito, ia se apaixonar, casar, ter filhos e teria condições de dar uma vida digna à família. Então ele me perguntou: “ sua filha é bunita, não é? A senhora deixaria ela casá comigo?”  – Respondi que sim, desde que ele fosse honesto e trabalhador... e se ela o amasse. Percebia-o feliz, havia uma espécie de pacto, ele confiava em mim e me contava a sua vida. Fiz dele meu secretário de turma: distribuía folhas, recolhia-as, levava recados à secretaria e na saída, levava o monte de cadernos para o meu carro. Ele se sentia importante com essas tarefas.

Dois meses depois, ele começou a faltar. Renata disse que estava doente. Depois de cinco dias, falei que ia visitá-lo. Ela não teve alternativa. Contou-me que o pai deu uma surra no irmão e ele decidiu não vir mais à escola. O pai não sabia, pois saía pela manhã para o trabalho e só chegava à noite. Perguntei por que ela não contava ao pai e ela respondeu que tinha medo do irmão, que a ameaçava com faca caso contasse. Negou-se a levar-me à sua casa por medo.

Procurei na secretaria a ficha de matrícula, copiei o endereço e no dia seguinte, saí mais cedo e fui à casa do meu aluno. Ele jogava bola na rua.Quis correr ao  me ver, mas falei com carinho e ele se achegou. Entrou no carro e conversamos. Prendi a mão dele nas minhas, olhei dentro dos seus olhos e consegui convencê-lo a se arrumar para ir comigo para a aula. Quando entrei na rua da escola, alunos espalhados por todos os cantos e ele fazia questão de mostrar-se dentro do meu carro, como se chegar com a professora lhe conferisse status.

Vivemos seis meses em harmonia.  Ele mostrava-se interessado, tirava boas notas e cada teste ou prova em que se saía bem, eu pedia para trazer assinado pelo pai. Um cem para ele foi a glória! E ele tirou! Dei-lhe um livro de presente.  Contou-me, no dia seguinte, que ficou ansioso para que o pai chegasse, para mostrar e ganhar elogios. O senhor deu uma olhada rápida e perguntado pelo menino se não lhe daria parabéns, simplesmente respondeu que ele não fez mais que a obrigação de tirar boa nota e ainda cogitou que devia ter colado de alguém, pois era burro de nascença.

A professora da turma voltou da longa  licença. Retomou a classe, mas conversei com ela sobre o Cristian; que lhe desse atenção, pois era tudo o que precisava . Ela me olhou como se eu fosse louca e foi saindo dizendo: - Hummmm, detesto  aquele menino!

Passados três dias, a professora desceu segurando Cristian pelo braço. Entrou na sala da diretora e falou: “ não agueeento maisss! Ou ele ou euuu! ” – Meu coração doía, mas eu não podia interferir.  A diretora decidiu transferi-lo para uma turma da manhã. Conversei com ele, disse que ia gostar da nova professora, pois era muito boa e minha amiga. Ele foi muito contrariado. Falei que poderia me procurar, pois eu o ajudaria em qualquer dificuldade; continuaria sua amiga.

Logo que cheguei em casa, liguei para Lourdes, a professora do primeiro turno. Falei sobre o menino, pedi-lhe paciência com ele.
Numa manhã, fui dar uma olhada nas turmas. Vi com tristeza o meu menino, lá na última carteira, encostado à parede, zoando e atrapalhando os colegas.

Tempos depois, liguei para a professora e ela me disse que não podia deixar a turma para dar atenção a um menino que não queria nada, que faltava muito e até andava sumido ultimamente. Perguntei à Renata pelo irmão e ela me contou que ele fugiu de casa e que o pai nem foi procurá-lo. Ela estava feliz; disse-me que finalmente tinha sossego. Nunca me senti tão impotente e omissa! Tinha vontade de levá-lo para casa, dar-lhe um lar...o colo que nunca teve!

O tempo passou. Alguns anos depois, minha filha, adolescente, estava numa  discoteca em nosso bairro. Disse-me que entrou um grupo mal encarado, ela teve medo e foi para casa. Reconheceu num deles o Cristian. Ele estava com uma arma, à mostra, na cintura.

 

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos" - Junho de 2018