Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

A caixinha de música

 

        

Em uma cidade mineira mais um bebê nascia, em 1918,  em uma fazenda.  Seus pais nunca viveram em outro lugar a não ser  no campo.  Nas distantes fazendas,  algumas pessoas viviam muito, devido a boa alimentação natural,  mas para outras pessoas acontecia o contrário, ou seja, quando surgia alguma enfermidade que não se curasse com chás,  muitas delas partiam jovens para eternidade.  Foi o caso dos pais deste bebê.  Quando isto acontecia, os órfãos eram distribuídos, cada um ia para uma casa. Ritinha e a irmã foram dadas, para famílias diferentes e distantes. A pequena  Ritinha  era esperta, aprendia tudo rápido. Na fase adolescente,  auxiliava a cozinheira da fazenda e portanto adquirira os seus segredos, para agradar o paladar exigente daquela família.  Ela gostava de servir as refeições, ver todos à mesa, na sala de jantar. A menina era bem vestida, adquirira bons costumes,  circulava  pela casa nos momentos sociais.   Todos da fazenda gostavam dela, inclusive as visitas.
Um dia percebeu que um caixeiro viajante olhava muito para ela.  Ele era estrangeiro,  falava diferente, era bonito,  jovem,  ao contrário da maioria destes profissionais.    Vendia   de tudo um pouco, mas principalmente vestuário.  Quando ele chegava,  a dona da fazenda e os filhos ficavam  alegres, gostavam e podiam comprar à vontade. Ele chegava apeado em um cavalo lindo, de nome Mouro,   e o outro era só para carregar as mercadorias.    Ao adentrar  na fazenda,  descarregava tudo,   em seguida   caminhava para um local especial para dar água e alimentar os animais.  Depois o caixeiro era encaminhado até a grande cozinha, onde serviam almoço ou guloseimas,  dependendo do horário que ele chegava.  Quem servia era justamente a menina.
Ele sorria para ela, fazia elogios, todavia o que mais a impressionava era o olhar.  Ela era carente,  portanto se afeiçoara a aquele rapaz.   As poucas horas que ele passava ali era como um dia de festa para ela. Era um sentimento estranho, que a fazia  alegrar-se.   Ele era muito diferente dela, mas o coração não tinha janelas, nem portas.
O caixeiro não tinha data certa para chegar,  visitava a fazenda aproximadamente a cada três meses, mas para Ritinha parecia uma eternidade entre a partida e o retorno.   Guardava aquele sentimento em segredo.  Percebendo a afeição dela,   em uma das visitas o caixeiro fez questão de oferecer-lhe um presente, mas pediu que não comentasse com ninguém, deveria ser um segredo apenas  entre eles:  era uma caixinha de música.   Abria-se uma tampinha,  e  então escutava-se o som de uma música suave, imediatamente  uma dançarina começava a rodopiar, até que a música encerrasse.   Virando a caixinha havia um ponteiro.  Era só girar algumas vezes, com delicadeza,  que a música retornava e a bailarina rodopiava novamente.    Ritinha nunca ganhara algo tão lindo na vida.  Até chorou de tanta alegria.   Mas ao sinal dos passos da cozinheira  adentrando,  Ritinha escondeu o presente e o cavalheiro caixeiro viajante foi encaminhado até a sala.  Depois das vendas concretizadas,  pediram para Ritinha servir um suco para ele.  Em seguida partiu.  Em poucos minutos  estava  atravessando a porteira. Mais uma vez  Ritinha ficara observando de  longe,  até o ponto em que a visão era dissipada.  Novamente voltava para seus afazeres, desta vez pensando na caixinha de música e nas palavras dele.  Era um sentimento estranho,  pois ao mesmo tempo que a alegrava,  também a entristecia.  
Dali dois meses ele retornou novamente. Desta vez trouxera uma caneta para presenteá-la. Segundo ele,  era para ela escrever cartas de amor.  Novamente o caixeiro pediu segredo,  então ela imediatamente escondeu a caneta.   A oportunidade de conversar sempre era   na cozinha.  Não demorou muito e o caixeiro foi encaminhado para a sala, para mostrar as mercadorias.  E novamente partiu, sendo visualizado de longe até que atravessasse a porteira e fizesse a curva, sumisse no horizonte.
Na outra visita,   ele a presenteou com  uma peça íntima para dormir.  Novamente pediu segredo. Explicara que não podia trazer algo de vestuário externo, pois as pessoas da fazenda perceberiam e estranhariam.   Apesar de constrangida com aquele presente, compreendeu a explicação dele.  O caixeiro estava sempre alegre, muito falador,  mas desta vez fechara o semblante para olhar nos olhos dela, em silêncio.  O coração dela parecia explodir.   Ao ser servido, com um pedaço de bolo,  ele aproveitou a oportunidade e disse: -  Ti voglio bene Ritinha.   Ela nada entendeu, mas achou bonito ouvir o que dissera ele.
Ela não sabia o que fazer,  de tanta emoção. E dali em diante  os dois se olhavam de um jeito incomum.   Depois de mais umas três visitas e presentinhos,  chegara a hora do caixeiro declarar-se, convidando-a para um encontro às escondidas.   Lá ele  a abraçou,  pedindo uma prova de amor.   Embalada na música da caixinha, sonhou!  Não entendeu direito o significado do pedido,  era inocente, boba,  permitiu ser encantada!   No final do breve encontro, cada um seguiu para seu lado.
Não se sabe a razão, mas depois daquele dia nunca mais o caixeiro retornou na fazenda. Todos estranharam,  todavia o esqueceram rapidamente pois outro caixeiro viajante apareceu, tão simpático quanto aquele.  Ritinha por sua vez não se conformava, inclusive não podia desabafar,  com ninguém,  a falta que ele fazia  para seu  coração. Seu consolo era chegar a hora de dormir, para ficar quietinha e tranquila, pensando nele.
Ritinha era franzina,  mas de repente começou a engordar,  sentir umas coisas estranhas.  As pessoas começaram a notar, questionar.   Ela por sua vez,  também não entendia o que estava acontecendo;  muito sensível , chorava à toa.    Então um dia a matriarca da fazenda aproveitou  a visita de um médico da família,  pediu para que  examinasse Ritinha.   O diagnóstico foi rápido.  Quebrara a corda da caixinha de música, a tinta da caneta secou, o mundo desabou.  Dali em diante foi outra história.

   

 

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos" - Junho de 2018