Anchieta Alves de Santana
Pato Branco / PR

 

 

Um poeta morto

 


   

            Numa certa manhã de domingo, num tempo não muito distante, presenciei momentos de extrema melancolia cultural. Isto aconteceu num evento matinal que tinha sido organizado para fortalecimentos de amizades, ouvindo canções com traços de MPB e outros estilos musicais. Um dos convidados foi o meu primo, Neivan Veloso, competente cover do velho e sempre atual Raul Seixas.  E, com ele, veio outra pessoa bastante conhecida nas rodas de bebedeiras, que também era um grande artista amador, conhecido como Negro do Dé. Carne assando numa churrasqueira um tanto improvisada, bebidas acondicionadas em grandes isopores e caixas, uma boa música e bastante gente tagarela. Era, na verdade, um encontro entre amigos bem atrativo.
           Estávamos ali, sob a sombra majestosa de uma mangueira nos terreiros de um morador do povoado Sangue. Mangueiras onde outrora cantava um bando de passarinho bem diversificado.  E ali, ficamos horas a fio ouvindo Raul Seixas, Zé Geraldo, Fernando Mendes e outros do mesmo naipe. As conversas versavam sobre as mais diversas temáticas, mas o som musical era dominante. Aplausos, risos, brincadeiras. De quase tudo, um pouco. Era um verdadeiro paiol de diversão. Pois, ali, empunhando uma viola já surrada pelo uso, Negro do Dé encantava a todos com uma dose de competência merecedora de infinitos aplausos. Confesso, músicas interpretadas naquela voz amadora não deixavam, em nada a desejar aos mais aguçados e críticos ouvidos.  Não faltavam pedidos musicais. Perto do artista visitante era constante a presença de um prato descartável repleto de churrasquinhos feitos na hora. Ali, ele era o cara. Mas, também, ali, não faltam garrafas de cervejas e doses de uísque; mais uísque do que cerveja, mais cerveja do que carne. E, no intervalo entre um som e outro, o artista se rendia, não apenas aos aplausos de uma plateia empolgada que pedia bis, mas também aos goles de bebidas e churrasquinhos numa mesa bem recheada. E assim seguia o astro amador em seu momento de glória. Mais uma música, outra música, outra música, mais uma dose, mais uma música, outra música, mais uma dose, mais uma música, outra música, mais uma dose, mais uma música, mais uma dose, mais uma música, mais uma dose, mais uma música, mais uma dose, mais uma música, mais uma dose, mais um dose, mais uma música...por vezes, um churrasquinho.  
          Ao se aproximar do final daquela manhã, qualquer audição desavisada, percebia que a voz do artista já não era a mesma. Já não tinha aquele afoite empolgado dos momentos iniciais. Os gingados e a interação com o público já não eram os mesmos. Letras musicais, por vezes, eram interpretadas quase pela metade e, por vezes, completadas com lá, lá, lá...quase infindo.    
         Quando a diversão chegou ao fim, o homem-show estava embriagado, dormindo sobre uma calçada suja e descuidada. A viola, da qual ele tinha bastante ciúme, estava nas mãos de alguns aprendizes. O artista já não recebia tanta atenção. Ao contrário, era vítima de sutis deboches, olhares reprovativos e brincadeira sem nexo.
          Olhando aquele quadro, entristeceu-me, não apenas a face, mas, sobretudo, o cerne da alma, ao ver um artista jogado na sarjeta imunda e impiedosa do vício e da ausência de oportunidades. Naquela situação havia uma forte mensagem que teimava em publicar que o sol ainda não nasceu para todos e a ausência de luz sempre ofusca o fim do túnel. E nesse passo, ali estava um homem, um artista que poderia ser ovacionado por uma grande plateia e ganhar aquilo que é justo nos desvãos do capitalismo e no seio social. Mas, não! Vencido pelas “ausências” e pelo vício, Negro do Dé era apenas um poeta morto. Mais um.

 


 




Conto publicado no livro "Contos Selecionados"
Edição Especial - Julho de 2021

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