Francisco José Nascimento
Brasília / DF

 

 

A janela do quinto andar


                     

    Todas as tardes dona Cândida ficava sentada perto da janela do seu apartamento esperando a hora da revoada dos pássaros pretos que tingiam o gramado de pontos escuros. Fazia isso naqueles meses mais frios, quando o sol se fazia presente sempre. E assim passava horas e horas observando, como se o tempo fosse a coisa mais abundante ao longo dos seus noventa e três anos. E era. A sua janela mágica se abria para um imenso gramado, sempre verde durante a maior parte do ano, o ponto de encontro das pessoas do bairro e dos amantes de esportes ao ar livre. Ao longe, por cima da copa das árvores, estendia-se o imenso lago azul, com seus barquinhos de velas brancas. Nem sempre fora assim, quando se mudou para ali, na década de sessenta, tudo não passava de um imenso deserto de terras avermelhadas que eram levadas pelos ventos, sujando tudo que encontravam pela frente. Sentia prazer em ficar observando as pessoas que passeavam com seus animais de estimação ao longo daquele imenso gramado. Quase não saía mais para passear porque estava dependente de cadeira de rodas e não gostava de pedir favor a ninguém. Sempre prezara por sua independência e, não seria agora, no final de sua vida, que iria ficar pedindo favores. Mesmo assim, se extasiava só em observar a alegria dos pássaros pretos, seus favoritos, saltitando pela grama e pelos galhos dos ipês, numa alegria sem fim. Ficava assim, cismando, até que as sombras do fim do dia inundavam todo o gramado. Sua janela ficava no quinto andar do edifício mais antigo do bairro. Dali, onde não podia ser vista por ninguém, observava as pessoas, conversava com elas e até as chamava pelos nomes fictícios que ela fazia questão de batizar usando as suas semelhanças com pessoas famosas. Dessa maneira, construiu um mundo só seu, impenetrável, que não dependia de ninguém para torná-lo real. Sem sair da sua janela ela podia conversar com as pessoas e fazer novas amizades. Suas tardes eram sempre ocupadas com essas conversas e, isso, a deixava feliz.
          Seu Getúlio chegava todos as tardes, pontualmente, às dezessete horas. Enquanto capitão da reserva fazia da pontualidade a sua marca. A sobrevivência na caserna dependia de um item muito elementar: a obediência. A obediência e a pontualidade eram para ele uma coisa normal. Nunca deixava de fazer seus alongamentos preliminares, ao ar livre, e depois, completava a programação com uma pequena caminhada pelo gramado. Vinha sempre sozinho. Não conversava com ninguém, mas, cumprimentava todos. Ele ganhou esse nome porque a sua cabeleira parecia muito com a do antigo presidente. Tinha estatura mediana e aparentava ter uns oitenta anos. Cor branca, rosto fino e alongado. Do alto de sua janela ela sempre fazia as mesmas perguntas para ele: - Boa tarde, seu Getúlio! Tudo bem com o senhor? Como passou o dia? Hoje fez um calor daqueles, não foi? Tudo bem com a sua família? E Getúlio lhe respondia, sempre muito sério e calmo: - Vai tudo bem dona Cândida. Hoje meus filhos ligaram para mim. Conversamos por um bom tempo. Eles estão bem, obrigado, mas não os vejo há cinco anos. Eles moram distantes e nunca encontram um tempo para vir me visitar. E a senhora, não vai dar uma voltinha hoje? E ela respondia: - Hoje não, a menina que me faz companhia não veio, amanhã talvez. Boa tarde. Seu Getúlio saía caminhando a passos curtos, desafiando algum problema com a sua perna direita e depois se recolhia em um dos prédios da redondeza.
          - Olá, dona Marta! Tarde linda hoje, não é? O sol foi de lascar. Precisei ligar o ventilador da sala para conter o suor. E a noite o frio deixa a gente com dores por todo o corpo. E dona Marta respondia, com a delicada beleza que lhe rendeu o nome emprestado da eterna miss. – Olá, querida, boa tarde. Muito calor mesmo. Tive que vir passear com o Bob um pouco mais tarde por causa do sol que estava muito forte.  A noite já vai chegar e o frio vai fazer doer até os calos secos. A senhora não vai dar uma voltinha hoje? Cândida respondia: - Hoje não vou poder descer. Estou me sentindo um pouco indisposta. Acho que é por causa do calor e da baixa umidade. Marta se distanciava levando o seu cãozinho preso na coleira, mas, continuava sendo observada pelo olhar atento de dona Cândida. Dona Marta aparentava ter uns oitenta anos, mas, sempre descia para passear como se fosse a uma festa: sapatos de saltinhos, maquiagem marcante e cabelos sempre alinhados. Uma miss que não perdeu o status mesmo com o passar dos anos. Dona Cândida dizia que uma mulher devia estar vinte e quatro horas arrumada, preparada para qualquer ocasião. Somente deixara de usar sapatos, com saltos muitos altos, após seus problemas com a artrose se acentuarem. Sofria com muitas dores, mesmo assim, jamais abriu mão de estar maquiada e com os cabelos bem penteados. Costumava dizer para os amigos que a morte não iria pegá-la desalinhada, jamais. A primeira coisa que fazia depois que acordava era correr para o banheiro onde passava horas se produzindo, se embelezando para a vida e para ela mesma.
          Certo dia apareceu um novo morador, moreno e cheio de ginga. Devia ter uns setenta anos. Ela olhou o novato e logo lhe colocou o nome de Cartola. Lembrava de longe, pelo jeito descontraído, o mestre do samba. Ficava por ali, sorrindo e brincando com os transeuntes. Dona Cândida não perdeu tempo. Logo entabulou conversa com o recém chegado. – Boa tarde seu Cartola, é novo por essas bandas? Nunca tinha visto o senhor por aqui. Seu Cartola respondeu. – Diga lá dona Cândida, mudei há pouco tempo. Vendi uma casa que tinha em São Conrado, dei a parte dos meus filhos, e comprei uma sala e quarto aqui perto. Não preciso de muito espaço para viver, mas, uma boa cama para dormir disso não abro mão. E soltava uma boa gargalhada. – Ainda estou conhecendo o pessoal do bairro, me ambientando e pelo que vi só tem gente boa e atenciosa, como a senhora. Dona Cândida, respondeu. – É porque o senhor ainda não me conhece. Mas, não se acanhe seu Cartola, se precisar de alguma coisa pode contar comigo. Também vivo sozinha e não tenho um pinto para dar água. Sou feliz assim, não gosto de gente me enchendo o saco. - Até mais ver, disse Cartola, já se distanciando. - Amanhã conversamos mais. Agora vou andar um pouco e conhecer mais pessoas. Cartola se afastou e ela ficou observando o seu andar irreverente peculiar nos cariocas da gema. Ela mesma frequentou muitas rodas de samba quando era mais jovem. Gostava de sambar e se exibir para os inúmeros admiradores. Guardava entre as suas coisas uma velha bandeira da Mangueira, sua Escola de Samba preferida. Mas, só teve uma paixão na vida. E, por ele, largou tudo, para viver um grande amor. Saiu do Rio de Janeiro e veio morar no meio do nada. Nunca tiveram filhos e, quando o assunto vinha à tona, sempre adiavam para decidir mais para frente. E assim, o tempo foi passando, e como tudo que não é prioridade, acabou por cair no esquecimento. Dizia, com certo contentamento, que não teria ninguém para derramar uma lágrima por ela quando morresse. Não gostava de dar trabalho para ninguém e, por isso, até a sua sepultura já estava pronta, faltando apenas colocar a data do falecimento. Fazia questão de morar sozinha e reclusa. Era assistida apenas por uma cuidadora que a visitava duas vezes por semana ou quando ela chamava, e por uma diarista que limpava o seu espaçoso apartamento uma vez por semana. O resto ela se virava sozinha, como sempre, fez ao longo de sua vida.
          A menina Mariana ainda não completara 10 anos e descia todas as tardes para passear com seus dois cãezinhos da raça Shih-tzu. Dona Cândida gostava muito de conversar com ela. Achava a menina muito inteligente e educada. Morava no andar debaixo, mas, nunca haviam se encontrado pessoalmente. Sabia do seu nome porque sua mãe ficava o dia todo chamando: - Mariana! Hora de acordar; - Mariana! O café está esfriando na mesa; - Mariana! Hora de banhar para ir ao colégio; - Mariana! Hora de ir pra cama. Mariana, Mariana, como essa idade é bela. Os sonhos germinam como a grama na estação das chuvas. Dona Cândida gostava desse nome porque uniam duas mulheres incríveis da Bíblia: Maria a mãe de Jesus e Ana mãe do profeta Samuel. Mariana era uma menina alegre e educada. Quando crescesse queria ser aeromoça, para viver voando pelos céus e conhecer muitos países. Enquanto isso não acontecia, vivia perambulando, pela pracinha, com as suas duas cachorrinhas de estimação.
          Dona Cândida sentiu falta da amiga Benta, (aquela mesma, famosa por suas receitas de culinária) e de Mazaropi, (cópia fiel do ator dos filmes de comédia). Há pelo menos uns dois meses não apareciam para as caminhadas vespertinas. Algo lhe dizia que eles não iriam aparecer nunca mais. Da última vez, notou que estavam bastante doentes, quase não conseguiam andar sozinhos. Teriam ido morar em outro endereço? Estariam acamados? Ou, quem sabe, teriam morrido. Quem sabe? Depois dos oitenta anos a morte sempre prega peças e chega sorrateira. Embora seja esta a rotina mais sórdida da vida, ninguém aceita de bom grado. Por isso, ela já havia se preparado e deixado tudo muito bem organizado. Levava uma vida confortável, mais sóbria, nunca fora de gastar muito. Era arredia as modernidades como televisão, computador e celular. Quase nunca assistia nada na telinha. Por isso, pouco sabia do mundo, das guerras, das catástrofes e das crises mundiais. De uma coisa, entretanto, não abria mão. Ouvir, na radiola da sala, as suas músicas prediletas que toda a vizinhança sabia de cor. O que gostava mesmo era abrir a sua janela mágica pela manhã e fechar às vinte horas, todos os dias da semana. A partir das dezesseis começava a conversar com os amigos imaginários, quando eles apareciam. Depois disso, fechava a janela, passava a pesada cortina, apagava as luzes da sala e ia para seu quarto. Às vezes, lia um pouco, tomava seus remédios e deitava para dormir.
          Mas, um certo dia, a janela encantada do quinto andar, não se abriu mais para o mundo. Ninguém, ninguém mesmo notou esse detalhe. Que importância teria para os frequentadores da praça uma mera janela que não se abria mais? Para toda aquela gente a janela lhes era indiferente. Haviam coisas mais importantes para se preocuparem que uma janela no quinto andar de um velho edifício. E continuaram a fazer o que sempre faziam nas tardes lindas de sol. Como dona Cândida havia profetizado, ninguém se deu conta que o seu olhar, através da janela mágica, também havia se fechado para sempre.

 

 

 


 




Conto publicado no livro: "Contos de Amor"- Edição 2022
Julho de 2022

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