Vinícius Bernardes Mondin Guidio
São Paulo / SP

 

Roberval

 

           

Um calafrio lhe descia a espinha. As lágrimas escorriam como o sangue que jorrava de seu peito. O olhar triste tomava conta de sua face. Seus pensamentos se confundiam com as lembranças, numa doce valsa de passado e futuro obliquamente misturados. Apesar de tamanho desatino sentimental, sabia de sua verdadeira culpa. O ciúme exacerbado sempre fora seu maior inimigo.  Olhava para os punhos cheios de sangue pensando se haveria solução para o ato que havia cometido.
Foi naquela noite fria que começou a desconfiar dela. Com a xícara do seu tradicional café noturno, que começou a pensar se estava sendo traído. Dizem que cabeça vazia é a oficina do diabo e nesse caso não foi diferente. Todo mundo trai pensava ele, porque ela não? Viviam uma relação estável. A falta de brigas era algo que o assustava, já parecia de praxe em todos os relacionamentos discussões quase que corriqueiras.  Principalmente com o passar dos anos. A convivência em sua opinião era o maior dos males de uma relação. Sendo inevitável a instabilidade. Terminava o último gole do amargo café, com essa suspeita de que algo havia de errado em seu relacionamento. Faltava algo.
Seguindo em direção à cozinha enchia mais uma xícara. Onde estaria ela agora? No quarto era óbvio, mas onde estariam seus pensamentos. Será que estava sonhando com um amante vinte anos mais jovem do que ele, todo sarado com músculos e uma virilidade de dar inveja. Estaria ela pensando em uma maneira de livrar-se dele, herdar o dinheiro de anos de suor e trabalho e assim finalmente poder colocar uma carne nova em sua cama. A indagação de Otelo finalmente lhe parecia clara, o sangue parecia ferver-lhe as veias, o temor de estar sendo traído sem dúvida era a pior de todas as sensações.
Olhava-se no espelho com vergonha de si, um quarentão acabado por anos de labuta. Um homem com mais poucos anos de vida, preso em um escritório sem sonhos, sem esperanças, sem nada. Um homem de poucas palavras que com o passar dos anos transformaram-se em suspiros frente a uma rotina metódica que o atormentava. Seus olhos abriam-se mais, voltava à cozinha enchia outra xícara na esperança de atingir a resposta a seus temores.
Lembrava dos primeiros anos quando se conheceram. Foi na faculdade que o enlace aconteceu, ele cursava administração, ela pedagogia. Cursos totalmente diferentes, que apesar de tudo despertaram uma atração entre ambos. Começaram a se falar, trocar cartas, se encontrar nos barzinhos da região. Seu sorriso era o que mais o encantava, mas fora o olhar que arrebatara seu coração desta maneira avassaladora. O mesmo olhar de ressaca de Capitu. Quem sabe Bentinho não houvesse passado por esse mesmo indagar, essa mesma dúvida, antes de iniciar suas suspeitas sob o comportamento de Capitu. Tanta coincidência, que se a memória não lhe falha, assim como a personagem machadiana ela tinha um amigo;  seu nome era Eusébinho. Seria com ele que ela o estaria traindo? Não. Estaria um velho ressequido assim como ele. Além de parecer jogar no outro time. Nunca fora visto com uma namorada. Ou, então, escondia muito bem.
Com a xícara em mãos o homem seguiu para o quarto, mas não entrou.  Ficou a observar a silhueta da esposa na cama, os belos traços e curvas que ela possuía. Não se conformava, como ela poderia estar fazendo isso com ele. No começo até pensava ter se casado por interesse, não financeiro, mas para mostrar à sociedade. Não tinha habilidade com as mulheres. Sempre fora muito tímido. Ela foi como uma rosa a desabrochar, aparentava experiência e ao mesmo tempo ingenuidade. Seguia a risca a teoria de Nelson Rodrigues, era uma dama na mesa e ao mesmo tempo uma puta na cama. E hoje essa experiência o assustava. Com quem estaria casado? Não a reconhecia mais. Aquele amor juvenil cedera espaço para a desconfiança. Olhava para ela, quando notou sua bolsa jogada num canto. Para ser mais especifico, no canto direito do quarto. O olhar fixo o prendia ao objeto. Ali estaria a prova que procurava. Rapidamente pegou a bolsa e começou a vasculhá-la, assim como um cão a rasgar lixo atrás de comida. Queria aquela prova. Sabia que estaria lá. Foi quando da pequena bíblia de bolso escorregou uma fotografia.
Era um rapaz alto e viril, no verso com uma letra fina e delicada “Com todo o meu amor”. Estava lá o que procurava. Pensava agora em como se vingar, a quantas estaria esta história? Será que seus amigos e parentes já sabiam que era corno? Precisava lavar sua honra e como faziam os antigos, lavar a honra com sangue.
Foi à gaveta da cômoda e pegou o revólver. Olhava para o metal brilhante fascinado, cego de ciúme. Enxergava apenas a silhueta dela. Possesso adentrava o quarto. Mirou o revólver. O dedo estava no gatilho. Era hora de fazer justiça.
O estampido ecoou pela rua. Ele estava em pé e ela atirada sob a cama. A arma não disparara, mas o som vinha da garagem; era o carro. Assustado tomou consciência era o carro . Foi correndo ver o que era. Tamanha correria fez com que não se lembrasse da escada. Caiu, abrindo os pulsos que ficaram cheios de sangue. Olhava para o carro intacto. Relembrava do velho problema no escapamento.
Agora lá estava ele. Via, então, o revólver em suas mãos e começava a refletir o que poderia ter feito, o ato que cometeria caso aquele estampido não houvesse disparado. Começou a chorar. Pegou a foto que estava no seu bolso enxergou bem o rapaz. Percebeu que não era amante, mas ele mesmo anos atrás. Cego de ciúme iria cometer um ato pérfido contra uma santa. Uma moça que desde o começo sempre buscou sua felicidade. Guardou o revólver e dormiu. Pensando apenas se haveria perdão para o ato pensara em cometer, o estágio de loucura em que chegara, e o pior o de não ser digno de merecer uma mulher como aquela.
No dia seguinte ele saiu de casa bem cedo, queria fazer-lhe uma surpresa à noite. Bastou que saísse para que ela se levantasse. Foi ao telefone ansiosa, discou alguns números e disse:
-Alô! Roberval, meu amor, pode vir ele já foi!

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão"- Edição Especial - Fevereiro de 2017