Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

Almas gêmeas

 

           
Deitada em seu colo, a amada ri. A criança que nela dormia, desperta.
Pela janela, entra um perfume de flores, entra também o rumor da fonte.
A moça ri, mas o menino que ele foi, sorri também. Recorda as manhãs
vividas quando tinha dez anos, correndo naquela fazenda, colhendo pêssegos maduros, tomando banho de rio e olhando a menina de laçarote na cabeça, andando de bicicleta pela margem, fingindo não percebê-lo naquele banho, completamente nu, só com o abdome de fora. A bicicleta deslizava no mosaico  de pedra e se distanciava dos olhos do menino extasiado.
Ela, Maísa, oito anos,  filha do dono da fazenda, Jaime.  Ele, Felipe, o filho do
caseiro Wilson. A menina  gostava de contar os bois, debruçada na cerca. Também acompanhava Wilson quando moía no pilão a farinha e o açúcar. Via-o também de longe rasgando a terra com o arado e depois, o menino Felipe o ajudava, depositando as sementes. Aquele olhar feminino e inocente sobre si, incomodava-o, não sabia porquê.
Um dia, Wilson ganhou um bom dinheiro na loteria. Foi morar na capital, onde poderia oferecer um melhor estudo para o filho. O menino nunca mais viu Maísa, nem seu laçarote com pontas caídas sobre os longos cabelos louros, mas nunca esqueceu a ternura do seu olhar infantil derramando-se sobre ele.
Felipe tornou-se engenheiro e trabalhava numa grande empresa de construção civil. Mas queria mesmo era ser menino, por dentro e por fora. Trazia para a vida adulta as lembranças da meninice. Laçar um potro rebelde na fazenda era bem mais fácil que dar o laço na gravata.
Numa visita a um hospital antigo, que seria  fechado para ser modernizado, em  reunião com a diretoria, conheceu uma médica, que sentou-se à sua frente.
Não teria percebido mais nada, se, em determinado momento, ela não tivesse tirado os óculos e, ocasionalmente, o encarado. Era o olhar de Maísa. Os cabelos estavam presos, mas tinham o mesmo tom acinzentado de louro. Aguardou ansioso que o seu nome fosse revelado. Ao assinarem a ata da reunião, ele fez questão que ela assinasse primeiro. Sim! Era ela!Lá fora, um lanche para os participantes e num momento em que a moça ficou só, ele se aproximou:
- Doutora Maísa? –surpresa, ela respondeu: - Sim! Conhece-me? – ele sorriu e respondeu: - desde o tempo que usava enormes laçarote, passeava de bicicleta em volta do rio da fazenda de seus pais, enquanto o filho do caseiro tomava banho.
-Não acredito! - ela exclamou. - Felipe Carvalho? Que bom te ver! Como ficou bonito!
 Cresceu até demais e como vê, fiquei baixinha! Mesmo de salto, bato no teu ombro! – abraçou- o forte, como se fosse um amigo de sempre, do dia a dia, sem constrangimento ou cerimônia. Levou-o para a sua sala e combinaram uma saída à noite para jantar e fala rem do passado.
Moravam em bairros relativamente próximos, trocaram números de celulares e despediram-se com um abraço de velhos amigos. Descobriram, no jantar, muitas afinidades. Falavam desde música popular à poesia, passando por cinema, novelas, futebol e profissões.
Tiveram muitos outros encontros. O sentimento infantil despertou. Nos discursos amorosos prevalecia o lugar comum, por excelência. Cada amante imagina viver a mais singular das paixões, a mais inigualável... e viveram... e vivem!
O amor,afinal, não compõe com a dor a mais desgastada e, portanto, mais sábia de  todas as rimas poéticas? A dor, graças a Deus,  sempre amena: saudade pelo distanciamento,  devido a alguma viagem de trabalho, a dor por ferimentos num acidente  em uma obra, mas com todo o carinho  e cuidados da sua médica preferida.Em tudo prevalecendo um amor sólido e profundo, capaz de torná-los um único ser.
Agora, naquele quarto da fazenda da infância, a amada deitada em seu colo e essa volta ao passado através das tantas lembranças. Fizeram questão de que a lua de mel fosse naquele lugar.
De repente, faltou luz e o calor estava infernal. O caseiro foi dispensado e não havia gerador. A cumplicidade entre ambos era tanta que a ideia surgiu ao mesmo tempo: - que tal um banho de rio, à luz do luar?
Despiram-se e se amaram naquelas águas tão familiares. A lua, bem indiscreta, fazia questão de enviar raios prateados para iluminar o erótico-amoroso cenário. Felipe abraçou muito a amada e lembrou dos seus passeios de bicicleta, cabelos ao vento. Era tão inacessível a filha do patrão de seu pai!Tinha até vergonha de encará-la, naquela época. Como podia imaginar que aquela seria a mulher da sua vida?  
Colam os rostos e corpos, sentem a brisa que chega ao regato. Um barulhinho de grilos parece um fundo musical. O amor sentido e vivido, surgido nas memórias da meninice, mãos  delineando as faces e moldando carícias e uma fome irrefreável de se fundirem totalmente para se tornarem  um só.

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão"- Edição Especial - Fevereiro de 2017