Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

 

 

O grupo escolar - década de 1960

       A família passava por dificuldade financeira profunda, era  década de 1960.  A filha primogênita já estava com 7 anos, foi matriculada em um grupo escolar que ficava aproximadamente dez quadras da residência.   As aulas eram de segunda-feira  à sábado.  Alguns anos depois deixaram de dar aulas aos sábados.  Regina não gostou!
       Aquele grupo escolar ficava em uma área de pessoas carentes. Muitas crianças só conseguiam estudar porque a escola oferecia  comida, merenda.   Um dia era sopa de fubá,  outro dia era canja de arroz, outro dia pão com mortadela e suco,   outro dia chocolate com pão e manteiga, bolachas, frutas, etc.   Até que era diversificado.    
       O governo dava um caderno, 1 lápis, uma borracha e 1 folha de papel carbono.  O papel carbono era para copiar desenhos, depois pintá-los com capricho.  Tudo tinha que durar o ano inteiro. A caixinha de lápis só tinha seis cores e era de tamanho pequeno.  Se não tomasse cuidado ao apontar,  o aluno ficava sem lápis o resto do ano.    No final do ano as crianças escreviam com um toco de lápis.  As crianças menores só usavam lápis, mas depois de certa fase utilizavam caneta.  Tinha que encher  a caneta de tinta e dava muito trabalho.    Todos os materiais eram levados para a escola dentro de um saco plástico.
       A professora era morena,  procedente do Paraná, filha de um fazendeiro. Trabalhava com plena vocação.   Os  alunos a consideravam rica pois tinha um carro. Naquela época era muito difícil encontrar uma professora com carro.  Poucas mulheres dirigiam.    Além da competência para ensinar as primeiras letras e números,  toda  professora  necessitava ter  outras habilidades específicas,  para  ensinar as crianças a costurar, bordar, além de confeccionar coisas úteis, com objetos que iriam para o lixo.   
       Logo no início do ano letivo,  a professora levou um modelo de bornal para mostrar às crianças.     Assim que a aula foi iniciada,  a professora   pediu para que ficassem em volta dela, ao redor da mesa, pois ensinaria como fazer um bornal.  A demonstração foi mais ou menos assim:
       -  Crianças.... vocês pedem para a mamãe pegar uma roupa  velha que não usa mais,  dobra em duas partes,  põe o caderno em cima  para medir o tamanho e deixa uma folga.   Pede para a mamãe cortar.  Depois digam para a mamãe cortar uma tira, nem comprida nem curta, o suficiente para vocês  apoiarem no ombro.    Falem para a mamãe que ela também  pode fazer de saco de açúcar ou farinha.   É só ir na padaria, comprar um saco de algodão e alvejar.  Depois é só tingir,  de preferência com uma cor escura, pode ser azul por exemplo.  Quando estiver chovendo, vocês podem colocar o bornal dentro de um saco  plástico, para não molhar.  Ok?
       As crianças ficaram encantadas com a explicação da professora.   Lourdes, a mãe da menina Regina,   não tinha máquina de costura,  tudo  foi costurado manualmente, ponto a ponto, bem firme.    Em poucos dias a maioria entrou na sala de aula com seu respectivo bornal,  bem feliz.
       Na escola, quem passasse tudo a limpo no caderno,  com a letra bem bonita,  ganhava uma estrelinha.  Esta estrelinha era colada na parte de cima da folha do caderno. A estrelinha era de um papel tipo alumínio, de uns 3 cms de diâmetro.      Para economizar o caderno, Regina muitas vezes escrevia em papel de pão. Assim podia escrever rápido e de qualquer jeito.  Mas chegando em casa, logo depois de ajudar a mãe a lavar as louças, ela caprichava muito.  Às vezes  não tinha luz, tinha que escrever  utilizando lamparina.  .  Era um sufoco encher a caneta de tinta,  passar tudo a limpo no caderno.  A mão tinha que estar bem leve, caso contrário borrava tudo do outro lado da folha. 
       Ganhar um monte de estrelas tinha a sua importância.  Na entrada da diretoria tinha uma placa (tipo quadro negro) onde o nome do melhor estudante de cada classe ficava em destaque durante um tempo.  Muitos  alunos desejavam ter  o  nome  lá.   A menina Regina fazia de tudo para ser destaque.
       O livro era doado pelo governo.   Era a cartilha Caminho Suave.  O livro tinha que ser bem cuidado para ser utilizado por outro estudante, no ano posterior.  Quem fosse cuidadoso com o livro também ganhava uma estrela. 
       O relacionamento daquela professora com as crianças era muito especial.  Algumas meninas gostavam de presenteá-la  com algo.    Quanto a Regina,   só podia dar flores,  pois nada custava, eram retiradas do jardim de casa.  Certo dia  a  menina  observou  que no quintal tinha uma flor branca, muito bonita.  Ela cortou um galho e levou para a sua professora, a qual agradeceu dando um abraço e um beijo.  Durante a semana, todos os dias a professora recebeu sabugueiro.   A mãe da menina perguntou para ela:
       - Que tanto você leva flores para a professora?  Você vai acabar com a minha planta.
       Na segunda-feira,  a rotina continuava.  A professora recebeu  mais sabugueiro, mas desta vez  não demonstrara tanta alegria em recebe-las.   Como sempre,   Regina era a aluna que ajudava a organizar a fila, recolhia os cadernos,  empilhava-os em cima da mesa, etc.    A menina fazia de tudo para agradar, nem ia para o recreio brincar, só  para ficar  junto da professora.   Então a professora deixou todas as crianças saírem para o recreio, abraçou a menina,  e disse:<>       - Regina, eu gosto muito de flores, fiquei muito feliz.  Mas faz assim!  Você traz estas flores só uma vez por mês.  ok?
       A menina achou meio estranho,  mas  não resistiu em levar flores antes do tempo: uma rosa.  A professora não deu maiores explicações, mas  aquelas flores eram muito perfumadas e lhe provocava repetidos espirros.
       Naquela época o grupo escolar não era só estudo, mas a garantia de um passeio diário. A sede do conhecimento por parte daquelas crianças era  surpreendente, gerava muitas expectativas,  aliás muitas delas desejavam ser alguém importante para ajudar os pais.  Algumas desejavam comprar uma casa para eles.
       Até 1964 a menina só teve professora.    Somente no quarto ano primário é que surgiu a novidade das crianças terem um homem como professor.   Na ocasião, as mães foram na frente do grupo escolar protestar,  achavam muito estranho.  A confusão foi tanta que ocorreu boato da escola ser  fechada,  mas felizmente isto não aconteceu.  O professor  pioneiro daquele grupo escolar chamava-se Mozart.
       Aquela professora  era realmente especial e sensível no trato com as crianças.    De tempos em tempos, no grupo escolar  aparecia um dentista  de nome Dr. Carneiro, para cuidar dos dentes das crianças.  Na hora do atendimento,  uma atendente adentrava na sala e falava:
       - Fulana de tal, dentista na sala tal.
       Certo dia foi a vez da Regina, então duas alunas foram autorizadas a sair, mas só uma estava agendada.  E Regina como sempre queria ajudar, disse para a professora:  
       -  Professora, mas é só eu que vou arrumar os dentes!
       A professora respondeu:
       - Vão as duas.  É bom ter alguém junto.   Nem Jesus Cristo andava sozinho. 
       Como foi bom ter aquela professora na base da vida de Regina e das demais crianças.  Estamos em 2020,  alunos  e mestres vivem outra realidade, mas a importância do saber continua.  Otília foi a primeira professora de Regina Maria Leite.   Seu nome ficou no coração de muitas crianças. 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Outono" - Edição 2020- Julho de 2020