Célio Dubanko
Maceió / AL

 

 

Silêncios



        

        O que alimenta um amor? O que o faz sobreviver ao tempo?
        Até pouco tempo atrás, Mariana riria da obviedade das respostas. Hoje, deita-se em uma das redes na varanda da sua casa e observa as pessoas passando pela rua, os passos solitários e apressados de alguns contrastando com os sorrisos dos casais passando de mãos dadas pelo calçadão, cada um com sua história.
        Ela fecha os olhos e o relógio do tempo retrocede. Com nome e endereço, suas lembranças viajam ao primeiro encontro com César e, pela enésima vez, sobrevoam aqueles instantes inesquecíveis, de mútuo encantamento, até que seus pensamentos chegam ao início do namoro. E aos malditos silêncios!
        Se ele parecia distante e ela indagava a causa ou se ela lhe perguntava sobre o relacionamento anterior, sempre a mesma resposta: o silêncio! E quando, depois de muita insistência, ele falou, um sonoro “não tem nada pra dizer” encerrou o assunto.
        Tornou-se inquieta, as dúvidas tomando os espaços vazios e zombando da sua insegurança. Entristecida, pensou em desistir, mas já estava apaixonada demais para voltar atrás. Ficou e decidiu tocar em frente. Para isso, adaptou-se aos silêncios.
        Ele a amava – ou, pelo menos, ela acreditava nisso. Estavam sempre juntos. Um dia, casaram-se e vieram os filhos. Espaçados pelo tempo, uns poucos silêncios ainda aconteceram. Disposta a não deixar nada estragar aquilo que tinham, ela pulavas as casas do jogo e seguia em frente. Sabia as perguntas que não deveria fazer! Sem perguntas, sem silêncios! Simples assim!
        O tempo se foi, os filhos cresceram. Quarenta anos se passaram. De tanto ela insistir, mudaram-se para a capital. Vida nova, os silêncios relegados ao esquecimento, ela dedicava-se à família e via o marido fazer o mesmo. As dificuldades, mesmo com algum sacrifício, eram superadas. Os desentendimentos invariavelmente terminando em um beijo ou em uma bela noite de amor. À moda deles, eram felizes!
        Uma gargalhada lá fora faz Mariana abrir os olhos e fitar a outra rede vazia. Na rua, um bêbado tropeça! Ela já não o vê, os pensamentos viajando outra vez! Agora as imagens ainda estão quentes, doídas demais apesar de um ano haver se passado. Nelas, César está lá, na outra rede, celular na mão...
        - Viu a clínica que a Amanda vai abrir no interior? – Pergunta, com indisfarçável animação.
        Sim, ela havia visto a postagem no facebook, mas o nome da ex tantas vezes silenciado e agora pronunciado de “boca cheia” abala seus alicerces. O silêncio de tantos anos, como num passe de mágica, abruptamente quebrado.
        Perguntou-se o que significava aquilo, mas recriminou-se em seguida! Mesmo assim, desconfiada, disse não ter visto e nada saber.
        Então acontece! Ele faz críticas, dá sugestões, fala da cor da fachada, do portão que fora usado, da localização, das cadeiras na sala de espera, etc. Surpresa, ela pega o seu celular, quer ver a postagem. Mas, antes que consiga, ele recomeça. Ela tenta anotar mas, aturdida, não consegue. Intercalados por breves espaços, ela amargou trinta tortuosos minutos de monólogo, os olhos dele devorando as fotos, buscando cada detalhe a ser fartamente elogiado, cada imperfeição a ser corrigida. E como ele faria tudo funcionar perfeitamente!
        Até que, satisfeito, ele se levanta e sai, enquanto ela fica ali parada, desnorteada, os velhos silêncios voltando, conectados por aquelas palavras pontiagudas, penetrando os seus ouvidos e lhe ferindo a alma. Naquele dia não pensou em mais nada, sequer dormiu, assombrada por dúvidas que julgava mortas e sepultadas. Afinal, qual a razão daquele súbito interesse saído do nada, assim de repente? Por que tanto cuidado com cores, luzes, cadeiras, serviços que seriam oferecidos, isso, aquilo, sei-lá-mais-o-que? Um cuidado como ele jamais tivera com as coisas que ela fazia, uma atenção como jamais lhe fora dada?
        Havia a dedicação constante, a fidelidade dele por todos esses anos, as lutas vencidas a quatro mãos, e, principalmente, o quanto ele significava para ela. Mas, quanto ela significava para ele? De repente, já não sabia a resposta! Via suas certezas estilhaçarem-se, os medos agigantarem-se e tudo o mais se misturar num emaranhado de sentimentos confusos e contraditórios, sua alegria sendo aprisionada numa teia de emoções, num imenso labirinto sem saída.
        Passou o dia seguinte calada, amofinada, remoendo a dor, o ciúme lhe corroendo as entranhas. O outro dia também. E o outro. Ele certamente percebera o seu silêncio, a sua dor - ela fizera questão de exibi-la. Ansiava por uma palavra, um afago em seus cabelos, um toque dos seus dedos, um olhar mais atrevido ou qualquer outra coisa que lhe oferecesse o menor dos motivos, que lhe servisse de engodo, que a levasse a enganar-se que estava tudo bem, a pular mais essa casa no tabuleiro e seguir em frente outra vez. Mas nada aconteceu!
        No quarto dia, resolveu conversar, mas sentiu as palavras morrerem na garganta. As que saíram, desconexas e atrapalhadas, não formarem um mísero caco de raciocínio. Vencida, sucumbiu. Senhor da situação, ele mostrou-se ofendido, irritado e, por fim, fiel ao velho costume, silenciou. Mas só para ela! Os relatos entusiasmados daquele – segundo ele – namorico sem importância a partir dali ganharam espaço constante nas conversas com os amigos. Ele os exibia como a um troféu!
        O crescente nó na garganta a fez levantar da rede e buscar o ar! Desolada, já não sabia a conta das vezes em que fingiu não ouvir e das outras tantas em que tentou, com todas as forças, seguir em frente, mas fracassou! Por isso senta-se ali, e conversa com o silêncio colossal que agora habita entre eles. Um silêncio recheado de ecos e velhas perguntas ainda sem resposta. Um silêncio habitado por uma dor que não emudece, lhe amordaça o coração e lhe cala qualquer chance de ser feliz. E olha para a rua com seu indo e vindo cotidiano, como uma estrada tão incerta como cada um dos seus dias. Uma estrada que, à noite, entorpece e também silencia, assim como aquele amor sem certeza de um amanhã!

 

 


 




Conto publicado no livro "Contos de Grandes Autores"
Edição Especial - Maio de 2021

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