Jonatas Rubens Tavares
São Francisco do Sul / SC

 

 

Raízes (ou A origem do outono)



        
           
Houve um tempo em que o outono, como o conhecemos, não existia. As folhas não amareleciam, muito menos dos ramos se desprendiam. O ano inteiro as árvores eram todas flores, frutos e cores. A história que aqui relato, contada a mim por um velho sábio, explica por que as árvores se enudecem uma vez no ano. Essa é a história da origem do outono.
Certa vez, em uma época há muito perdida, um viajante seguia a pé, cruzando matas, montes, rios e vales, rumo a um destino que somente ele e apenas ele conhecia. No trajeto, já calejado, anos a viajar, foi acometido por uma doença que o procurava matar. Como chegou o dia em que não mais resistisse, permitiu-se, cansado, no meio da mata apagar.
Depois de um sono de dias, despertou a perguntar:
- Onde estou?
- No mesmo bosque em que caíste adoecido – respondeu-lhe uma voz que vinha de cima.
O viajante, percebendo que jazia recostado em uma árvore, voltou a atenção, apressado, para o alto, imaginando que encontraria alguém pendurado em um dos galhos pertencentes ao caule no qual se apoiava. Ainda fraco, o homem pôs-se de pé com alguma dificuldade.
- Quem está aí?
- Aquela que esse tempo todo cuidou de ti – soou a voz, agora nitidamente feminina.
- Quem és tu? – ele ainda a procurava – És uma fada?
- Sou uma filha da terra - agora o viajante percebia que quem lhe falava era a própria árvore – e tu, de onde procedes, que igual tu jamais vimos por aqui?
- Não me recordo – revelou o homem – ignoro de onde venho e, embora agora não saiba para onde, só sei que vou.
- Recompõe aqui, pois, antes de partir, as tuas forças – um dos galhos da árvore do homem se aproximou e, em um tenro gesto de amizade, uma de suas próprias flores ela lhe ofertou – eu cuido de ti até que estejas apto a retornar a tua jornada.
Como estivesse fraco, o viajante a gentil oferta aceitou.
E a árvore deu-lhe sombra, do orvalho de suas folhas deu-lhe de beber, dos seus mais doces, suculentos e saborosos frutos deu-lhe de comer. E quando o viajante, já recuperando-se, precisou de uma lança para caçar, a árvore ofereceu-lhe um dos seus galhos. E em noites frias ela descia seus ramos sobre o homem, o cobrindo, aquecendo, protegendo.
O homem, por sua vez, impedia que as trepadeiras e a mata rasteira a árvore sufocassem, assim como não permitia que as pragas dela se aproximassem. Em tempos de calor intenso, ele do rio levava água para saciá-la. E todas as manhãs o viajante à árvore cantava; histórias que não sabia de onde tirava a ela à noite contava.
Com o passar do tempo e a chegada do frio, no entanto, o homem mais e mais distante se encontrava. Com o olhar constantemente longe, mostrava-se perdido no nada.
- O que tens? – quis a árvore saber – Sofres de quê?
- Eu lembrei...
A árvore, entendendo que o viajante a memória recuperava, perguntou:
- E é ruim?
- Tenho que ir – revelou o homem.
A árvore, triste, limitou-se a dizer:
- És livre. Não és como eu. Não tens raízes.
Demoraram-se em um abraço.
Ele não o disse, mas se pudesse, ficaria.
Ela não o disse, mas se conseguisse, da terra se desprenderia e o acompanharia.
- Quando tudo estiver acabado, eu volto – o homem jurou.
E foi assim que o viajante seguiu em frente e a árvore seguiu exatamente onde sempre estivera.
Foram-se os anos e a árvore rapidamente envelhecia, definhava. Suas companheiras de bosque inevitavelmente o percebiam:
- É saudades do viajante – elas entre si diziam.
Árvore vigorosa, florida que era, andava acinzentada e iam-lhe caindo as folhas, dia após dia.
- Essas que estão aí caindo são as minhas lágrimas – explicava aquela que não mais sorria.
Quando o viajante enfim regressou, encontrou a árvore em pé, no mesmíssimo lugar, mas seca, sem vida. Ele, então, cuidou dela: impedia que as trepadeiras e a mata rasteira à árvore sufocassem, assim como não permitia que as pragas dela se aproximassem. Em tempos de calor intenso, ele do rio levava água para saciá-la. E todas as manhãs o viajante à árvore cantava; histórias que não sabia de onde tirava a ela à noite contava.
Mas a árvore não reagia.
Apesar do insucesso ininterrupto, o homem ao lado da árvore seguia.
Certa manhã as demais árvores do bosque ouviram um grito, misto de desespero e dor: o viajante, na ânsia por reaver a companheira, lançara-se a ela. No choque, o homem, contorcendo-se, com a árvore se amalgamava; seus pés, calejados, ganhavam o chão, virando raízes vigorosas, cravando-se na terra.
Eram, agora, duas as árvores secas. E encontravam-se entrelaçadas.
As árvores do bosque, testemunhas daquela união singular, se esvaíram em lágrimas e, assim, perderam todas as suas folhas. Enlutadas, em meio ao frio que por aqueles dias naquelas paragens imperava, permitiram-se um longo e entristecido sono.
Quando o calor voltou ao seu lugar, as árvores passaram a despertar, suas folhas, verde-claras, com ânimo revigorado uma vez mais estavam a brotar. Havia muito por comemorar(!): entre as árvores secas entrelaçadas surgia uma flor.
E assim, todos os anos, no outono, perdem as árvores as suas folhas, chorando a beleza e a dor daquela bela história de amor.

 





Conto publicado no livro "Contos de Grandes Autores"
Edição Especial - Maio de 2021

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