Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

O quadro



        
           
       A arte, seja ela qual for, tem alma e tem espírito. Quando ela encontra alguém que a abrace e a aceite ela se impõe, ela busca, ela orienta o artista e traz junto com ela a glória, o reconhecimento e quem quiser sobreviver da arte tem que se dedicar muito.  Zínia pensava assim porque tinha tido uma experiência fabulosa nessa área.
       Plantou uma muda de roseira bem em frente ao balanço onde gostava de passar as tardes admirando a natureza. As flores vieram exuberantes. Ela não sentiu vontade de colhê-las. Depois da primeira floração, vieram novos viçosos botões. Foi quando ela sentiu que um botão de rosa parecia estar triste, choroso tipo pedindo socorro. Então Zínia foi verificar a razão, e encontrou um gafanhoto da cor verde folha de roseira que estava comendo o miolo do botão de rosa.
       Zínia não teve coragem de acabar com o gafanhoto, que saltou e desapareceu. Refletindo ela imaginou como aquele gafanhoto devia ter ficado feliz quando deparou com a mesa posta para saciar seu apetite naquela flor, que iguaria dos deuses ele tinha encontrado para se alimentar. Mas a polaridade está presente em tudo. Como estaria se sentindo o botão de rosas sendo devorado pelo gafanhoto,  não conseguiria desabrochar para receber a visita das borboletas nem das abelhas que vinham buscar pólen. A engravatação da alegria, satisfação e prazer do gafanhoto, a sensação de tristeza, medo, dor e solidão do botão de rosas. E a impotência para fazer o desempate no julgamento do fato que se deparava com a angústia da Zínia. Então ela decidiu passar toda a vibração causada por aquela cena  para um quadro. E assim fez, conseguiu imageticamente expressar na tela a visão interna que se criou ante seus olhos.  Batizou o quadro com o nome de “Sentimentos”.
      O artista retrata a emoção do encontro da sua alma com a alma da arte e os dois caminham sempre juntos numa cumplicidade de almas irmãs.
       Zínia viu  um convite na NET para um concurso e exposição de obras de arte numa cidade do  nordeste. Mandou colocar moldura, vidro e pediu para fazer um chassi para embalagem da obra para viagem de avião, colocou um aviso grande de “frágil”. Despachou o quadro uma semana antes de ir, pois o prêmio seria entregue se o vencedor estivesse presente. Zínia seguiu o regulamento.  Ela chegou no dia marcado.
       A votação estava acontecendo a semana toda e no dia da premiação uma comissão de artistas plásticos entre outros encerrariam a votação.
        Assim que Zínia chegou procurou o organizador do evento e ele conduziu-a ao seu escritório e relatou: tive muitos problemas com seu quadro, foi aberto no aeroporto tiraram até a moldura, tive que pagar alguém para colocar a sua obra em condições de ser exposta.
        Por que isso?  Perguntou ela. - Desconfiaram que você estivesse transportando material ilegal. O chassi de madeira tinha mais de duzentos pregos, dentro muito papel amassado e plástico bolha.
       Tudo por excesso de cuidado. Que triste!
        No final do evento anunciaram a obra vencedora mais votada “Sentimentos” . Zínia recebeu medalha de ouro, diploma e foi entrevistada pela TV local.
       Ela regressou sentindo-se vitoriosa e feliz. No voo de volta foi trocada de lugar três vezes durante a viagem. Não se preocupou. Quando foi pegar a bagagem aguardou  bastante tempo para receber o quadro premiado. Ficou surpresa quando  foi conduzida a uma sala para interrogatório investigativo. Teve sua bagagem remexida e a obra foi novamente toda desmontada. A revista pessoal foi constrangedora. Foi então que entendeu a razão de alguns detalhes que aconteceram com ela naquela aventura.
        Não se entregou à tristeza nem ao arrependimento. Aceitou todo acontecimento como uma verdadeira obra da arte. Um artista tem olhos e intuição de artista ou não seria um artista nem seria escolhido pela arte para representá-la.
      Quem foi o vencedor do concurso: o botão de rosas, o gafanhoto, Zínia ou a arte?
       De volta ao lar trazendo  uma peça laureada com uma história surpreendente.
       Foi ao jardim e fotografou a roseira porque tinha dois gafanhotos se deliciando nos botões novos. Os dóceis botões se entregavam passíveis aos sufocantes devoradores no encadeamento do poder no percurso da vida. E assim é em todos os reinos. Qual é a representação dos gafanhotos na natureza? Os botões de rosa estão para os gafanhotos assim como os gafanhotos estão para os botões?
       Eis a questão: envenenar os gafanhotos, não plantar roseiras ou ver tudo como energia vital, imaginação do artista e ser um coautor da arte?

 





Conto publicado no livro "Contos de Grandes Autores"
Edição Especial - Maio de 2021

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