Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

 

 

Mestre, em muitos outonos


           
     

A menina era bem pequena, mas já afirmava aos seus pais que seria professora.  Brincava de casinha, bonecas, mas também simulava uma sala de aula, tendo como sua aluna uma priminha.  Seus pais faziam questão de adquirir livros e revistinhas infantis para ela, ou seja, desde tenra idade fora incentivada.  De noite, mesmo que o pai estivesse muito cansado,  fazia questão de contar uma historinha para a menina ou ler parte de um livrinho.  Houve boa semeadura.   Ela era uma privilegiada, uma criança fora da realidade da maioria daquele lugar e do  Brasil.
  
A menina  tinha sede do ¨saber¨,  a curiosidade dela despertava encantamento nas pessoas de sua convivência.  Após a conclusão do ginásio, para continuar seus estudos, teve que sair da cidade onde morava. Inicialmente foi difícil,  mas com o tempo se acostumou, conheceu muitas pessoas interessantes, lugares diferentes.  Foi bom. 

Alguns anos de desafios,  e o sonho de ser professora foi concretizado.  Ao mesmo tempo  em que ensinava,  sentia-se gratificada com o aprendizado, como docente.  Sempre havia um desafio.  Alguns deles eram difíceis, pois  levavam problemas particulares para a sala de aula.   Era necessário ter muita psicologia.  Como trabalhava em escolas com diferentes níveis socioeconômicos, foi possível vivenciar e comparar o desenvolvimento dos alunos, de acordo com suas condições.   

Na escola de bairro periférico,  um dos problemas que enfrentava era  a dificuldade dos alunos quanto às lições de casa.   Muitos deles não tinham pai e mãe alfabetizados, para orientá-los.  Em outros casos,  os pais tinham uma grande carga de horário de trabalho, consequentemente não conseguiam dar  atenção para o filho.     Às vezes,   alguns destes alunos fingiam entender um assunto, só para não perguntar, ou para evitar a gozação  dos coleguinhas.    O pior de tudo era perceber que alguns deles nem se alimentavam direito, para ir à escola.    Havia problemas de toda ordem.   

Às vezes algum aluno faltava porque o sapato molhara e não havia outro. Um dia um aluno chegou à sala de aula totalmente molhado; a professora não sabia o que fazer, teve que interromper a aula para conseguir uma roupa para ele.

Alguns deles chegavam com os olhos vermelhos, semblante apático.  Os docentes já sabiam o motivo:   “ Tinha apanhado  com cinta, chinelo ou até de vara de pau”.   Diante desta situação,  a professora sentia vontade de chorar.   Como é triste constatar agressões,  sinal de espancamento,  nas crianças.
   
Felizmente algumas delas conseguiam superar as inúmeras situações  adversas,  sentiam gosto pelo aprender.  Ou seja, já sabiam que a única forma de mudar a vida seria pelo conhecimento, pelo aprendizado. Para estes, o  sonho era mais forte que os desafios.  Todavia,  o corpo docente sabia que muitas daquelas crianças  estavam ali somente pelo fato da escola servir  lanche-refeição.   Para estes alunos era bem mais difícil o aprendizado.  Muitas delas  já tinham o destino selado;  da mesma forma que seus ascendentes.

Na escola particular também havia dificuldade com os alunos,  mas os problemas eram outros.  Muitos deles já falavam de suas intenções de futuro,  baseados na profissão dos pais.  Outros,  levavam tudo na brincadeira.     Para estes,  não havia problema em relação às tarefas de casa,  não dependiam de lanche de escola,  não chegavam molhados, etc.   Mas,  em alguns casos a professora detectava problemas psicológicos, alguns também apanhavam.  

A professora  tinha os livros como seus verdadeiros amigos, como instrumento de capacitação, de sabedoria.  Todas as vezes que indicava livros para os alunos da escola particular, rapidamente os pais adquiriam.    Então a  professora recomendava a leitura,  para posteriormente discutir o tema, em sala de aula.  No dia marcado para análise do livro, os alunos eram provocados a tecer opinião,  abordando focos importantes, etc.    A sala de aula ficava encantada.    Ao sentir a história, cada um demonstrava a sua sensibilidade; alguns altruístas, outros radicais, ou seja, cada um era único.   Tinha também o aluno que lia só por obrigação, sem gosto.

Posteriormente  era o momento da professora aplicar mais uma de suas “ sabedorias ” , ou seja,  recomendava que eles doassem aqueles livros para outros alunos, menos favorecidos.    Gostando ou não de livros,  todos eles se alegravam em doar.     A professora incentivava, agradecia,  recebia tudo com carinho,  os colocava em uma sacola e levava para a escola do subúrbio.  Não dava para levar tudo de vez.  A sacola ficava pesada, mas a consciência ...  leve!

Tudo que aquela professora  podia fazer, que estivesse ao seu alcance,  ela colocava em prática.  Muitas vezes era necessário um abraço, uma atenção diferenciada.   O alunado das duas escolas tão distintas provocava  diversos sentimentos e atitudes,  inclusive revolta quanto às decisões políticas de quem podia e nada fazia.

São muitas histórias para relembrar,  comparar.  Alguns deles não surpreenderam em suas escolhas de profissão.  Alguns foram além,  outros nem  tanto.  Mas, todos que são possíveis recordar, fazem parte da história de vida daquela professora ...tão dedicada.  Quanto orgulho, felicidade,  quando se tem notícia de um aluno com boa trajetória. Quando a professora recebe um e-mail,  uma mensagem de um ex-aluno,  é puro encantamento.       

Minha homenagem  a  todos os mestres,  especialmente a uma amiga e escritora,  na qual me inspirei para escrever este texto:  “Maria Alice Lima Ferreira”. 

Um país não se desenvolve bem, com tantas diferenças e injustiças.  Devemos lembrar:  A educação é primordial.





Conto publicado no livro "Contos de Grandes Autores"
Edição Especial - Maio de 2021

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