Regulamentos Como publicar Lançamentos Quem somos Edições anteriores Como adquirir Entrevistas
Literatura de Cordel


Cordel pedagógico
Délio Rocha (Jornal DIÁRIO DO NORDESTE, Fortaleza-CE)
LITERATURA POPULAR (25/4/2006)




DE ONDE VEIO O CORDEL
(Zé Maria de Fortaleza e Arievaldo Viana)

Não se sabe exatamente
O cordel de onde veio
Alguns afirmam que os mouros
Lhe serviram de correio
Até a Península Ibérica
E de lá pra nosso meio.

Pois lá na Península Ibérica
Cordão se chama cordel
Onde eram penduradas
As folhinhas de papel
Nascendo daí o nome
Desta cultura fiel

---

Os versos de Zé Maria de Fortaleza e Arievaldo Viana anunciam outra façanha dos folhetos de literatura popular. Além de narrar os entreveros dos sertanejos e os duelos mais curiosos, de descrever reinos mágicos e contar histórias mirabolantes, o cordel pode se tornar uma importante ferramenta no processo de alfabetização das pessoas. O projeto “Acorda cordel na sala de aula”, idealizado por Arievaldo Viana, vem ganhando escolas da rede pública no Ceará, Tocantins, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Não é nenhuma novidade a utilização da poesia popular na instrução de pessoas. Esse é um caminho que já foi percorrido pelas crianças da Grécia antiga, como assinalou o historiador cearense Gustavo Barroso, na obra “Ao som da viola” (1921): “O ensino começava pela poesia, por ser o meio mais fácil de guardar na memória, nessa época em que livro era raro... Assim pôde o povo grego conservar, carinhosamente, de cor, os admiráveis cantos de seus rapsodos”. Os livros deixaram de ser raridades. Mas ainda são caros e inacessíveis para a maioria dos brasileiros. Ao contrário do cordel.


O poeta Arievaldo Viana sabe dimensionar a importância dos ‘versos’ no processo de educação do nordestino. “Fui alfabetizado pela literatura de cordel, em 1973. Os folhetos eram as únicas leituras disponíveis para aquele menino do interior. Primeiro, decorava os versos lidos por minha avó. Depois, ela foi me ensinando a identificar as letras e a formar palavras”, diz. Logo depois, Arievaldo virou atração em uma mercearia perto de sua casa. “As pessoas ficavam impressionadas com aquele menino de seis anos lendo cordel com desenvoltura”, recorda.

A partir daí, o poeta cearense ficou com uma dívida com a literatura de cordel. Um débito que ele pretende se livrar com o projeto “Acorda cordel na sala de aula”, que tem, como carro-chefe, um livro didático pronto para ser utilizado tanto por professores como por alunos. A obra passeia pela história da poesia popular, traz versos de alguns dos principais nomes do gênero e faz parte de um “kit-educação” que inclui, ainda, uma coleção de 12 folhetos. Entre os títulos da coleção estão alguns clássicos do gênero, como “O Justiceiro do Norte” (Rouxinol do Rinaré) e “Epopéia do Boi Corisco” (José Vidal dos Santos).

O rigor gramatical é levado em conta no Projeto “Acorda cordel na sala de aula”. “A gente tem a preocupação de revisar todos os folhetos, para evitar erros de concordância, de vírgula, de acentuação. Mas sem tirar a vida dos versos”, explica Viana. Os cuidados com a correção da escrita já são verificados nos versos originais de alguns cordelistas estudados dentro do Projeto, como Leandro Gomes de Barros e José Pacheco da Rocha. “Não é todo folheto que serve para ser usado na escola. A gente seleciona os autores e os temas mais adequados”, avisa.

Dentro do que recomenda a educação moderna, a escolha recai sobre temas transversais. Os folhetos da coleção do “kit-educação” tratam de ecologia, prevenção de doença, combate ao preconceito e outros temas considerados politicamente corretos. São histórias como a do caçador João Mendonça que, depois de muito aprontar na floresta, tem que enfrentar um tribunal, tendo suas vítimas no júri. “Alguns bichos debatiam/ Se o perdoavam, ou não,/ Pois tantos crimes cruéis/ Não mereciam perdão”, narra o poeta Klévisson.

Para despertar o interesse dos alunos pela leitura, os folhetos podem ganhar uma roupagem mais moderna ou comparações com ídolos da juventude atual, como Gabriel O Pensador. “O rap dele é um cordel urbanizado”, compara Viana. Segundo ele, é comum a música se apropriar da riqueza da poesia popular. “O que o Jackson do Pandeiro fazia era cordel puro: ‘Meu pai me disse: meu filho tá muito cedo./ Eu tenho medo que você case tão moço./ Eu me casei e vejo o resultado./ Estou atolado até o pescoço’. Esta canção tem a métrica que é o fundamental do cordel. E tem um começo, meio e fim, outra característica da poesia popular”.

Um dos folhetos de Arievaldo Viana, “A Didática do Cordel”, feito em parceria com Zé Maria de Fortaleza, ensina muitos segredos de um bom cordel. São noções de rima, métrica e orações. O livro-base do Projeto abriga um questionário que permite ao aluno exercitar o que aprendeu no folheto didático. Isso leva o estudante não só a praticar a leitura, mas, também, a se aventurar, como autor, no universo da literatura de cordel. E, quem sabe, descobrir-se um poeta popular. “Isso aconteceu com um aluno da cidade de Salitre”, informa o poeta.

A idéia de alfabetizar e incentivar a leitura por meio do cordel, segundo ele, vem sendo usada com sucesso em Palmas, no Tocantins; em Mossoró, no Rio Grande do Norte; em Campina Grande, na Paraíba; e em várias cidades do Ceará. “Em Canindé, a gente já distribuiu 350 kits para a capacitação dos professores do município. O objetivo é fazer com que cada um deles saiba aproveitar o potencial do cordel no desenvolvimento dos alunos”, diz.

O contista e poeta Ribamar Lopes, pouco antes de morrer, em janeiro deste ano (2206), deixou registrado, no prefácio do livro “Acorda cordel na sala de aula”, a importância da literatura popular para a educação, especialmente do nordestino. “A curiosidade pelo conteúdo dos simpáticos livrinhos, despertada tanto pela natureza de suas histórias quanto por sua identificação com elementos da nossa cultura popular, levava as pessoas a aguardar com ansiedade o momento em que alguém lhes viesse ler os raros folhetos trazidos do mercado ou das feiras por algum parente ou conhecido”.

A leitura de folhetos para grupos de pessoas não alfabetizadas, conforme Lopes, sempre foi prática comum desde que a literatura de cordel se fez difundida entre nós. “Foi a curiosidade pelas histórias versadas no folheto popular que começou a despertar, principalmente na zona rural, o interesse das pessoas pelo aprendizado informal da leitura”. Com o cordel, portanto, muitos nordestinos carentes de alfabetização aprenderam a ler. Um caminho que, com o Projeto “Acorda cordel na sala de aula”, pode voltar a ser percorrido por um número bem maior de nordestinos.

OBS O kit-educação do Projeto “Acorda cordel na sala de aula” é composto de um livro básico de 111 páginas e mais uma coleção com 12 folhetos.

Informações: arievaldoteh@bol.com.br