Regulamentos Como publicar Lançamentos Galeria Contato
Projeto Saber Cordel Edições extras Imprensa Como adquirir
 
Literatura de Cordel
 

Nossa Senhora das Águas
Autor: João Evangelista Rodrigues
jevare@arcosnet.com.br


Prefácio ao texto NOSSA SENHORA DAS ÁGUAS
Por Elizabeth Maria dos Santos

O homem de fé roga a Nossa Senhora das Águas que o venha fortalecer... e para seus versos encomenda sentimento e magia. Nossa Senhora das Águas o que tem com os versos desse homem... o que tem com a poesia?
Nossa Senhora das Águas, este canto de fé que o poeta João Evangelista Rodrigues mais uma vez nos oferta, propõe e provoca esse encontro: da poesia com as águas, na irmandade que guardam. A extrema poeticidade, a leveza, o manejo lúdico das palavras, são traços singulares do texto do autor e, nesta obra, de modo muito especial, vêm-se associar à temática, confundindo-se ao ritmo, à melodia, à fluidez da água corrente. Nesse ritmo, na melodia insistente das águas, corre um riso/rio/rito de fé, a se reiterar na forma onomatopéica do refrão: "Água é vida e alegria."
O signo da água, (re)corrente na poética do autor, atesta a estreita relação de quem foi nascido e criado em beira de rio. O desafio do rio - poemas, escrito na década de 70, as canções " Canção da Lua Nova" e "Ladainha", em parceria com Rubinho do Vale, entre outras criações, deixam transparente essa ligação natural do poeta com este elemento vital da sobrevivência em nosso planeta - a água.
O texto Nossa Senhora das Águas pode ser visto como reflexo nítido dessa natural ligação. O livro começa a ser produzido em 1998, quando o autor, em suas costumeiras andanças pelas cidades mineiras, estudava o movimento das águas. Dessa aventura, novas buscas e outros encontros vão surgindo. Do contato com a gente simples de Rondônia, do Jequitinhonha, com essa gente que vive, que canta e conta com paixão a terra e o rio, nasce A mutação dos barcos (1989). Aqui, mais uma vez, a água se faz o signo movente, o movimento, o fio corrente da poesia.
O gosto pela oralidade é outro traço marcante do texto de João Evangelista Rodrigues. Os laços estreitos com o imaginário popular, ou esse vínculo com a tradição oral pode ser atribuído, novamente, à vivência do autor com os contadores de "causos", dos sertões e dos vales por onde andou. E, certamente, ao seu efetivo envolvimento com a cultura popular mineira, que conta com parcerias importantes, como a do músico e compositor Toninho Camargos, a do escritor, compositor e pesquisador da cultura popular Téo Azevedo. Fazem também parcerias com o autor Joacir Ornelas, Zé Baliza e Pereira da Viola, também pesquisadores e representantes da cultura popular. Em Nossa Senhora das Águas, a marca da oralidade é duplamente revelada, pelo espelho de sua própria forma: o cordel.
Como a relação com as águas - fio corrente desde a infância -, marca-se a afinidade do autor com os cordelinhos. Ainda menino, descobriu um baú de poemas de cordel, ao qual rendeu-se encantado. O pavão misterioso e A Princesa Porcina são algumas das relíquias desse baú. A descoberta foi, sem dúvida, um dos importantes motores do interesse do poeta pelo gênero, que aos leitores mineiros já prestigiou com diversas publicações, como A verdadeira história do bandido da cartucheira, Os irmãos Piriá: uma guerra no sertão, A peleja do Jornalista Mineiro pela Viola Afinada, entre outros cordéis, alguns ainda inéditos, como A Brasília do seu Raul, Sonhar não é proibido, As aventuras do Fusquinha Prateado, Tudo isto é Cultura, Natureza e O dia em que o Brasil se Coloriu.
Há quem tenha preconceitos contra o cordel, sob a alegação, muitas vezes, de que se põe numa relação bastante pragmática com o poder. Isso talvez se deva à perspectiva de que, o ritmo e a métrica, que são próprios do cordel, por contribuírem com a fácil memorização, podem funcionar como elementos persuasivos. De fato, composições do gênero são freqüentemente utilizadas em campanhas políticas e no cumprimento de objetivos promocionais. Mas, se é esse o grande pecado desse tipo de literatura que muito se aproxima do povo, que é quem protagoniza seus enredos, há de se prezar sobretudo as reais qualidades do cordel, como o alto poder de comunicabilidade, a capacidade de expressar, com o parentesco que guarda da tradição oral, os conflitos e as temáticas do cotidiano. Há de se considerar a liberdade que os cordelinhos têm para cantar essas temáticas. Liberdade que certamente tem como base a aproximação do gênero com algumas características próprias do jornalismo, como atenção especial aos grandes fatos da humanidade, às tragédias, aos momentos históricos importantes, pautando -se pela atualidade, rapidez e, por que não, por uma certa referencialidade, sem prejuízo, por se tratar de autêntica literatura, da ficção e do imaginário popular. E, além de haver quem tenha preconceitos contra o cordel, há ainda quem os tenha contra os cordéis mineiros. Assim, ao incluir experimentações do gênero no contexto das Minas Gerais, o poeta esbarra em, pelo menos, duas significativas dificuldades: primeiro, na perspectiva do cordel como literatura menor e, depois, no fato de que esse tipo de composição não é própria de nosso contexto cultural, embora se saiba que Minas guarda uma relação muito forte com a cultura da Bahia e, de maneira geral, com a dos estados do Nordeste, berço do cordel no Brasil. E é a água o elemento que contribui para a firmeza dessa relação, traçada via região norte e nordeste do estado, através dos caminhos de água dos rios Jequitinhonha e São Francisco.
Que, em relação às letras, as nossas Minas tenham reconhecida e respeitada representabilidade na tradição oral, não restam dúvidas. Basta que se mire num dos mais importantes dos nossos cânones, João Guimarães Rosa, para que isso se referende. Mas, curiosamente, o cordel, que nasce na França e, no Brasil, encontra o Nordeste como sua maior referência, não é tradição mineira. Se bem que, se falarmos também em Carlos Drummond de Andrade, com "João e Maria", podemos até dizer que temos boas representações no gênero.
Apesar disso, o que significa puxar o fio de um cordelinho nessas Minas de cá, senão um ato de ousadia, de irreverência contra as limitações que se impõem? É certamente a consciência desses aspectos que motiva o autor a, quase como a se reparar por se apropriar do gênero, dizer em Nossa Senhora das Águas: "Peço licença ao Nordeste/ do Pernambuco à Bahia/ não estou fazendo teste/ nesta minha alegoria/ só quero cantar ligeiro/ no coração do coqueiro (...).
Que as licenças sejam concedidas, ao poeta, pelos leitores mineiros e por todos aqueles que apreciam a arte do cordel. Que Nossa Senhora das Águas, a mesma que protege as terras e as fontes da Cambuquira, conceda ao nosso poeta, que aqui escreve e recita "do povo a sabedoria", os desagravos e as graças merecidas. E que, no contingente do gota-a-gota que há de se formar, não nos esqueçamos do mote principal, cuja memorização e prática se torna cada vez mais urgente às graças da Terra: "Água é vida e alegria".
Não por acaso, a Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema este apelo: "Água, Fonte de Vida". Intuição, premonição (ou premunição?), sensibilidade, ou seja lá o que for, assim é que se vai tecendo a fala dos poetas: liberta, comprometida com as urgências de seu tempo, carregada de sentidos, de enigmáticas profecias.



Dedicatória
Minas é o sertão das águas. Reino de peixes e iaras. Aqui os rios são santos e doces. Pretos e verdes. Grandes caminhos liquefeitos em armadilhas e esperança. Rios são espelhos onde bebem os bichos e os homens. Campos propícios à colheita de sonhos e cantigas. Minas é o sertão das águas. Aos rios todos de minha aldeia - seus afluentes e influências - onde pesquei sons, sonhos e outros universos invisíveis. A todos que respeitam e cuidam das águas do mundo - a alma de nossa aldeia comum.


Nossa Senhora das Águas
dê-me força e energia
encha meus versos de alma
de sentimento e magia
não quero raiva nem mágoa
onde meu verso deságua
água é vida e alegria

dê-me senso de verdade
de justiça e harmonia
dê-me prazer e vontade
pra seguir esta porfia
pra beber água de fonte
no mais longínquo horizonte
água é vida e alegria

eu louvo a água da bica
da tempestade bravia
da chuva mansa que fica
parecendo melodia
louvo a água das lagoas
no sossego das taboas
água é vida e alegria

louvo a água da vertente
das marés da calmaria
da geleira onipotente
do charco sem travessia
as águas do mundo todo
em qualquer parte do globo
água é vida e alegria

eu louvo a água salgada
e porque não louvaria
a água benta e sagrada
que canta dentro da pia
no sacrossanto batismo
ou no mais profano abismo
água é vida e alegria

peço licença à Iara
à Virgem Santa Maria
ao deserto do Saara
só de Deus a travessia
nos quatro cantos do mundo
escrevo o mote profundo
água é vida e alegria

peço licença ao Nordeste
ao Pernambuco e a Bahia
não estou fazendo teste
nesta minha alegoria
só quero cantar ligeiro
no coração do coqueiro
água é vida e alegria

eu também peço licença
pro santo da romaria
eu canto aqui na presença
de mendigo e fidalguia
pra todo tipo de gente
pra passarinho e serpente
água é vida e alegria

a Senhora Aparecida
santa de muita valia
peço carinho e guarida
para todo o santo dia
para toda raça humana
sob os Arcos do Santana
água é vida e alegria

canto o Rio São Miguel
São Domingos me alivia
da sede seca e cruel
que a tudo mataria
peço ao Córrego das Almas
às aves que batem palmas
água é vida e alegria

eu canto pois acredito
na real democracia
escrevo aqui e recito
do povo a sabedoria
maior que ouro e riqueza
é seiva da natureza
água é vida e alegria

eu canto porque desejo
não fosse não cantaria
canto igual um rio andejo
um tirador de folia
passando de casa em casa
mesmo quando apaga a brasa
água é vida e alegria

eu canto como se fosse
cantiga de profecia
água salgada foi doce
noite fechada foi dia
para o veloz albatroz
para o bicho mais feroz
água é vida e alegria

quero ver se alguém duvida
do cantar que se enuncia
se duvidar que decida
sem falsa velhacaria
água vem do ribeirão
corre na palma da mão
água é vida e alegria

vou saudar o São Francisco
não quero a sua agonia
pelo poder de Corisco
pela fé na cantoria
salve o Jequitinhonha
salve o leito de quem sonha
água é vida e alegria

pela bela Casca Danta
cachoeira que anuncia
fortaleza pura e santa
salto de água mais fria
pela glória nacional
unidade sem igual
água é vida e alegria

de São Roque à Pirapora
a água desce macia
Arcos de Luz mais sonora
meu Bom Jesus da Bahia
de Paulo Afonso a Penedo
o rio guarda segredos
água é vida e alegria

Real Porto de Iguatama
vai bebendo a geografia
de água areia de lama
canto de rio assovia
o Velho Chico não cabe
só na palavra saudade
água é vida e alegria

Lagoa de águas claras
de Prata que alumia
de lendas lindas e raras
nas curvas de cada dia
o rio banha a cidade
canta de felicidade
água é vida e alegria

o pequenino Santana
onde a boiada bebia
onde havia tubarana
onde a enchente gemia
só tem areia mais nada
na paisagem degradada
água é vida e alegria

Rio Preto São Miguel
águas de toda a bacia
São Domingos é corcel
saltando na pradaria
Amazonas e Madeira
nos cantos da terra inteira
água é vida e alegria

Vargem Bonita Moema
desce o rio em cantoria
canta o mesmo dilema
de água viva em porfia
nos acordes da viola
por toda a parte que rola
água é vida e alegria
nos bosques de Cambuquira
a santa paz irradia
feito o som de uma lira
no fulgor do meio dia
Nossa Senhora das águas
vela o mistério das matas
água é vida e alegria

quero saudar Zé Limeira
poeta de maestria
bebedor de cachoeira
rimador a revelia
vejo o poeta com sede
morrendo a mingua na rede
água é vida e alegria

Zé Limeira foi ao mar
bem cedo ao romper do dia
viu o mar se evaporar
rezou pra Virgem Maria
pediu pra tudo que é Santo
nas Sete Quedas de espanto
água é vida e alegria

promovendo mais façanha
fez das nuvens montaria
sobrevoou as montanhas
foi parar lá na Turquia
queria água de mina
onde a fartura germina
água é vida e alegria

quero saudar as florestas
desertos em alquimia
as cidades e seus insetos
inútil maquinaria
nas ruínas pós-modernas
nas caçambas e cisternas
água é vida e alegria

a água vem do escuro
vem de onde se alumia
nasce de jeito mais puro
rola pela serrania
todo o planeta precisa
sem água tudo agoniza
água é vida e alegria

sem a água os motores
da terrestre engenharia
não fariam seus terrores
contra a ecologia
a água move moinhos
na solidão dos caminhos
água é vida e alegria

existe água nas frutas
veja só a melancia
a água vive nas grutas
torna a terra mais macia
no sertão ou na cidade
é a mais pura verdade
água é vida e alegria

tem gente que desperdiça
água só por picardia
por tolice ou por preguiça
até hoje quem diria
não sabe que água é sangue
no riacho ou no mangue
água é vida e alegria

é um dom da natureza
e tem muita serventia
serve pra lavar tristeza
lavar medo e covardia
é contra toda sujeira
a água é nossa bandeira
água é vida e alegria

não é preciso dizer
quem disser não pecaria
é ela que faz nascer
esperança e poesia
nos campos de plantação
água nova é promissão
água é vida e alegria

cuidar das águas nascentes
das águas mornas e frias
soltar as águas correntes
das importantes bacias
é uma ação cidadã
na Terra de Canaã
água é vida e alegria

ao leitor faço um pedido
eu não quero regalia
faça o que aqui foi lido
dê asas a ousadia
da água faça a defesa
em nome da natureza
água é vida e alegria

e na hora de votar
defenda a cidadania
vote em quem vai legislar
com saber e garantia
presidente ou senador
deputado ou vereador
água é vida e alegria

mas não espere somente
assim não alcançaria
esta batalha é urgente
senão tudo secaria
lute sempre organizado
no Planeta ameaçado
água é vida e alegria

seja empresa privada
ou poderosa autarquia
não vale ação isolada
nem mera demagogia
o Governo e a Igreja
sabem que nesta peleja
água é vida e alegria

eu vou seguindo o caminho
de água mansa e macia
às vezes piso no espinho
não vejo a estrela guia
ela mora lá no fundo
no rio turvo do mundo
água é vida e alegria

você termina a leitura
será que terminaria
água mole em pedra dura
assim bate a poesia
de tanto bater na gente
agita a água corrente
água é vida e alegria

mas a vida não termina
isto você já sabia
escreve aqui quem assina
em nome da ecologia
que a mãe d'água nos proteja
bendito louvado seja
água é vida e alegria

finalmente me despeço
talvez seja utopia
esperança em excesso
confiança e rebeldia
contra a corrente do tempo
viva a água em movimento
água é vida e alegria

se quiser falar comigo
não precisa cortesia
trato amigo como amigo
o que é bom com simpatia
poesia é água nova
não precisa mais de prova
água é vida e alegria

meu nome evangeliza
o verbo aqui se inicia
não quero honra de artista
nem se fosse não queria
meu ofício é escrever
quem quiser venha beber
água é vida e alegria

isto é Fraternidade
dividir a poesia
defender a humanidade
contra toda a covardia
participe da Campanha
entre o céu e a montanha
água é vida e alegria

independente da raça
do credo da ideologia
beba a água dessa taça
faça da dor harmonia
pois em todo o Universo
nas gotinhas destes versos
água é vida e alegria


Sobre o autor:
João Evangelista Rodrigues
, 55, nasceu em Arcos (MG), na cabeceira do Rio São Francisco. Jornalista, escritor, compositor e fotógrafo. Autor de livros como "O Avesso da Pedra",( 1981) "Mutação dos Barcos" ,( 1989) " A Oeste das Letras" ( 1999) e "Transversias" ,( 2003), folhetos de cordel, tendo , ainda, participado de várias antologias. Como compositor, é parceiro de Paulinho Pedra Azul, Téo Azevedo,Gilvan de Oliveira, Pereira da Viola, Joaci Ornelas, ZÉ Neto, Cid Ornellas, Rubinho do Vale, Zé Baliza , entre outros; Formado em Filosofia e Jornalismo . Foi diretor da Casa do Jornalista , Diretor Secretário Geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais e Superintendente de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. Atua como agente cultural, com particular interesse pela cultura popular. Atualmente é professor de Legislação e Ética em Jornalismo na PUC Minas Arcos, na qual exerce o cargo de Coordenador do Curso de Jornalismo e Gestão da Comunicação Integrada.




Página produzida pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores / Rio de Janeiro



| Página inicial | | Lançamentos |
| Assessoria Editorial | | Biblioteca virtual | | Cordel |