A
festa dos cachorros(*)
Autor:
José Pacheco
Colaboração
de Arievaldo Viana
arievaldoteh@bol.com.br
Caro
leitor se não lestes
mas alguém já vos contou
que nos remotos passados
até barata falou
porém isto foi no tempo
quando o trancoso reinou
Eu
ainda estou lembrado
que meus bisavós contavam
muitas histórias passadas
de quando os bichos falavam
como bem fosse a da festa
quando os cachorros casavam
Nesse
tempo os animais
era tudo interesseiro
só se casavam com bichas
que os pais tinham dinheiro
tanto que devido a isto
um gato morreu solteiro
Contudo
sempre viviam
em regimes sociais
respeitando aos governos
nos atos policiais
crendo no catolicismo
conforme a lei de seus pais
Não
eram lá tão chegados
a nossa religião
mas não desvalorizavam
nem faziam mangação
dizem até que macaco
deu provas de bom cristão
Tamanduá
era padre
como todos sabem disto
naquele tempo também
pelos antigos foi visto
uma lavadeira velha
lavando a roupa de Cristo
Muitos
viviam da arte
outra parte do roçado
na vida comercial
quem era rico e letrado
aqueles mais pobrezinhos
viviam do alugado
Como
bem a lagartixa
o calango e o tejá
que são pelados de tudo
da mesma forma o tatu
que tem somente o casco
e aquilo faz pufá
Com
este verso eu aviso
a quem atenção me presta
que vou tratar dos cachorros
e da grandiosa festa
talvez que nunca se visse
outra melhor do que esta
Havia
um cachorro velho
Chefe da localidade
os outros lhe veneravam
com respeitabilidade
tanto porque era o chefe
como pela sua idade
Tinha
relações com todo
era muito acreditado
não tinha muito dinheiro
como grande potentado
mas também não era desses
que come um pão apertado
Tinha
uma filha bonita
trabalhava em seu socorro
dessas que se diz assim:
por aquela eu mato e morro
capaz de embelar
o coração dum cachorro
Certo
dia um primo dela
vindo duma batucada
passando pelo terreiro
ela estava acocorada
catando pulga e matando
no batente da calçada
Bom
dia querida prima
o cachorro assim falou
ela respondeu: bom dia
e disse, como passou
então com vai meu tio?
o mesmo lhe perguntou
Palestraram
bastante
cada qual bem satisfeito
foi um namoro pezado
porém com muito respeito
mas para se apartarem
quase não tinha jeito
Trocaram
dúzias de beijos
ambos ali abraçados
choravam um pelo outro
e todos dois agarrados
devido a grande amizade
quase que ficam pegados
Chegou
em casa escreveu:
prima do meu coração
eu não posso deslembrar-me
da tua linda feição
portanto venho pedir-te
tua delicada mão
Recomendação
a todos
um abraço em minha tia
sem mais assunto desculpe
a ruim caligrafia
deste teu primo cachorro
edcetra companhia
Depois
fez no envelope
um ramalhete de flor
ele mesmo foi levar
pra dar mais prova de amor
e mesmo é muito custoso
cachorro ter portador
Chegou
ela estava só
prosaram mais de uma hora
depois apertou-lhe a mão
deu-lhe a carta e foi embora
ela ficou tão contente
quando leu que quase chora
Quando
o velho viu a carta
disse logo que não dava
mas ela bateu nos peitos
lhe dizendo que casava
o velho jurou de dar-lhe
e que amaldiçoava
A velha
também foi contra
os parentes não queriam
os irmãos quando souberam
todos numa voz diziam
que esse tal casamento
o pai nem eles faziam
Disseram:
ele é parente
mas anda de cachaçada
é um liso e não trabalha
portanto não vale nada
e por fim até juraram
de botar-lhe uma emboscada
A cachorra
noiva disse
a ele vocês não comem
eu acho conveniente
que nova reforma tomem
porque eu só não me caso
se cachorro não for homem
Ou
fazem meu casamento
ou então de madrugada
eu vou arribar com ele
e fico sendo amigada
embora nossa família
fique desmoralizada
O velho
considerando
da desmoralização
disse pra ela: eu te caso
mas sustento opinião
de nem cruzar teus batentes
nem te botar mais bênção
Depois
ele disse aos filhos:
de noite depois da ceia
vamos fazer isto logo
se não ela se aperreia
e vai nos fazer vergonha
na força da lua cheia
Não
havia inimizade
todos os bichos se davam
quando casava uma bicha
com muito gosto ajudavam
ainda que fosse rica
de gastar não precisavam
Vamos
tratar dos presentes
que a noiva recebeu
sapato, roupa e capela
a dona preguiça deu
aranha mandou-lhe um véu
que ela mesma teceu
Guariba
deu-lhe um boqué
de barba de guaribão
o gato deu aliança
o timbá deu a loção
o preá deu um bilro
o rato deu-lhe um botão
O noivo
também comprou
agulha, linha e dedal
uma panela e dois pratos
uma colher de metal
balaio de guardar ovo
vasilha de botar sal
Abano,
esteira e pilão
um ralo e um samburá
marmita, gamela e cuia
vassoura, estopa e puçá
fez a conta e depois disse:
pra quem é pobre já dá
No
dia do casamento
estava tudo arrumado
faltava somente a carne
para tratar do guisado
com pouco cada cachorro
chegava mais carregado
Um
trazia um pinto morto
não sei onde foi achá-lo
outro trazia também
uma ossada dum galo
teve um que trouxe até
o mocotó dum cavalo
Vinha
um tanto troço
que no caminho quase cansa
umas queixadas d'um burro
os encontros d'uma gansa
pedaços de couro velho
pontas de boi da matança
Uma
parenta do velho
era até boa parteira
pegava cachorro novo
ali naquela ribeira
por ser curiosa e limpa
foi servir de cozinheira
Chegou
e disse: meu povo
eu vim porque fui chamada
porém estou com rabuge
e muito encatarruada
o dono da casa disse:
ora comadre, isto é nada
Temos
aí muita carne
arroz, macarrão, farinha
guise lombo e faça bife
torre porco, encha galinha
eu quero é que todos digam
que na festa tudo tinha
Está
certo meu compadre
disse um cachorro cotó
disse a noiva, sendo assim
eu hoje encho o bozó
disse o noivo: eu como tanto
que o rabo chega dá nó
O velho
disse: compadre
você é a governante
tome conta da cozinha
aí tem um ajudante
de tarde chega mais três
penso que quatro é bastante
Pode
trabalhar com gosto
vá pedindo o que faltar
não tema que seu trabalho
quando a festa terminar
o seu compadre cachorro
tem com que recompensar
Qual
lá meu compadre velho
respondeu a cozinheira
lá para o fim do pagode
você dar qualquer besteira
e com relação a preço
entre nós não tem ladeira
Eu
quero é que meu compadre
mande um comprar tempero
eu vou preparando a carne
diga que volte ligeiro
porque se não tratar logo
pode até criar mau cheiro
Então
o velho entregou
o dinheiro e um saquinho
dizendo: traga dois cocos
e um quilo de cominho
vamos ver que desmantelo
açucedeu no caminho
O cachorro
ia fazer
como seu chefe mandou
botou o dinheiro dentro
do saco e depois dobrou
botou debaixo do rabo
saiu e disse: eu já vou
Mas
lá no meio do caminho
viu uma casa caída
com uma parede em pé
porém bastante pendida
ele ali foi urinar
quase que perdia a vida
Ele
encostando-se nela
mais ou menos abalou
e lá vai por cima dele
porém o cabra pulou
faltando o palmo dum grilo
para se dizer: matou
É
este o motivo justo
que quando vão urinar
ajuda sendo uma moita
só mija quando escorar
gato escaldado tem medo
de água fria o pelar
Afinal
sempre seguiu
até que chegou na feira
fez as compras pra voltar
numa pisada ligeira
mas aconteceu-lhe outra
pior do que a primeira
Quando
ele foi passou
num rio bastante cheio
como ia sem carrego
atravessou pelo meio
quando veio tinha mais agora
quase que vai no paleio
Chegou
na margem do rio
esbarrou na ribanceira
vinha os dois cocos no saco
ele amarrou na traseira
e apertou o tempero
debaixo da macaxeira
Então
dentro do embrulho
vinha um anel que comprou
era de um amigo
que a ele encomendou
teve medo de perder
no tal pacote botou
Mas
quando bateu nas água
desmantelou-se o papel
desceu com tempero e tudo
quando saiu do revel
olhou debaixo da cauda
tinha somente o anel
Todo
seu acontecido
chegou em casa contou
mas ninguém acreditava
o chefe lhe maltratou
dizendo que o dinheiro
ele bebeu e jogou
Onde
trazia o tempero
cabra safado mesquinha?
assim perguntou-lhe o chefe
ele mostrou o cantinho
um cheirou e disse: é certo
que tem cheiro de cominho
É
por isto que cachorro
tem uma certa ciência
de cheirar onde o tempero
deixou uma grande essência
qualquer que duvidar nisto
faça sua experiência
Ele
ficou tão vexado
que pensou que perdeu tudo
o chefe lhe perguntou
ele respondeu trombudo
até eu quase me afogo
quando mais troço miúdo
Mas
dum lado tinha um
desses gozos miudinho
e disse a ele: rapaz
tu só perdesse o cominho
olhou por detrás e disse:
olhas os cocos no saquinho
Finalmente
sempre a festa
da casa grande a barraca
corria cachimbo e vinho
licor, gasosa e truaca
gritava o cachorro velho:
bota prá diante a fuzaca
Veio
muitas qualidades
entre bicho bom e mau
paca tocava pandeiro
tatu corneta de pau
urso tocava num bucho
macaco num berimbau
Mestre
galo era o marcante
da quadrilha no salão
timbu era despachante
na boca do garrafão
o gato fiscalizava
as panelas do fogão
Estava
a festa animada
a carne ali abortou
porém por causa dum osso
grande briga se travou
deram uma tapa no gato
que o cabelo avuou
Ali
o dono da casa
riminou-se contra os tais
meteu a ripa pra cima
dando em todos animais
correram deixando a sala
só com ele e ninguém mais
Meus
leitores essa história
que vosso poeta fez
o meu bisavô contava
meu avô disse uma vez
o meu pai contou a mim
eu hoje conto a vocês
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(*)Texto do folheto "A FESTA DOS CACHORROS",
do cordelista alagoano JOSÉ PACHECO DA ROCHA,
falecido em 1954. Trata-se de um clássico da Literatura de Cordel.
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