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J.
Borges – o "monstro do sertão"
Autor:
Charles Bicalho
www.teolitcbicalho.blogspot.com
Bezerros poderia ser uma cidade
qualquer esparramada sobre o agreste pernambucano entre Recife e Caruaru,
ainda que de nome inusitado e tendo no artesanato, Carnaval, Frevo e Boi-bumbá
seus principais atrativos. Poderia ser… Mas não é.
Bezerros não é uma cidade qualquer do agreste pernambucano
por ser o berço de um dos grandes artistas brasileiros. Bezerros
é a cidade natal de J. Borges: cordelista e xilogravurista.
Tive a grande oportunidade de conhecê-lo pessoalmente neste fim
de ano, exatamente no dia 28 de dezembro, em seu local de residência
e trabalho.
Para se chegar a Bezerros se vai de Recife pela BR-232, também
chamada Luiz Gonzaga. Por sinal, é uma das melhores do Brasil:
impecável e muito bem sinalizada – talvez por ser também
a rodovia que leva a Garanhuns, cidade natal do Presidente Lula. Pode-se
dizer que é ela uma importante artéria que nos leva ao coração
do Brasil, pois além de ser o caminho para a maior feira livre
a céu aberto das Américas, a de Caruaru, cidade que é
conhecida também como a “Capital do Forró”,
é por ela que chegamos ao Memorial J. Borges, local que é
ao mesmo tempo oficina e uma espécie de galeria particular do folheteiro
(termo que designa tanto quem vende quanto quem produz cordel).
Incontáveis matrizes de xilogravuras cobrem as paredes. Estoques
de folhetos de cordel empacotados aguardam nas rudes estantes a hora de
ganhar o mundo. Em mesas grandes ficam expostas as xilos para venda, além
das publicações, postais e camisetas, vendidos como suvenires.
Imagens gravadas em azulejos penduradas nas pilastras também fazem
parte do mostruário.
Ao lado da entrada do ateliê, pintada numa parede, está a
reprodução de uma das xilos de Borges: O monstro do sertão.
O tal monstro de J. Borges, como representado na ilustração,
é o implacável sol, que, como dizem os versos na própria
xilo, é “uma peça bonita feita pelo criador / sou
quente clareio o mundo / no sertão sou o terror / porque acabo
a lavoura / do pobre agricultor.” Claramente a pintura é
uma espécie de metáfora do que se vai encontrar lá
dentro: J. Borges é que é o monstro, no sentido fantástico
e artístico do termo. Astro-rei das artes plásticas brasileiras,
é considerado, com justiça, por Ariano Suassuna, “o
melhor gravador popular do Brasil”. É oficialmente considerado
também patrimônio vivo da cultura brasileira.
Como uma ponte ligando diretamente a singela Bezerros a metrópoles
européias e americanas, J. Borges já expôs em lugares
tão variados quanto Zurique, Paris, Nova Yorque, São Paulo
e Brasília, conectando assim o ambiente popular das barracas de
folheteiros da feira de Caruaru aos sofisticados ambientes das galerias
internacionais.
Entrei em contato com o trabalho do clã Borges (uma vez que quase
toda a família, incluindo filhos, noras e netos, se dedicam às
artes gráficas) no ano de 2001, em Albuquerque, capital do estado
do Novo México, sul dos Estados Unidos. Ele expôs no Tamarind
Institut, órgão ligado à Universidade do Novo México,
onde eu ensinava Português na época. Na ocasião eu
adquiri uma xilogravura de J. Miguel (outro grande artista), enteado e
discípulo de J. Borges, intitulada “O vaqueiro no sertão”.
Tal exposição, me lembro, foi uma sensação
na capital novomexicana. As xilos dos Borges, bem como seus cordéis,
vendiam como pão francês quentinho. Quando contei isso a
Borges ele imediatamente começou a narrar, como bom contador de
causos que é, como foi sua saga para chegar aos Estados Unidos:
como, sem falar Inglês, e apesar das ressalvas de amigos e parentes,
se atreveu a ir sozinho de avião da pacata Bezerros para os States,
passando pelo Rio de Janeiro. Pedia informações em Português
e quem falasse Espanhol que o ajudasse. E assim foi se virando até
chegar ao Novo México. Ao fim de sua narração, completa:
“Sou matuto, mas não sou burro”.
Voltando ao Memorial, na ocasião
de minha visita em dezembro tive a oportunidade de adquirir das mãos
do próprio artista, além de algumas gravuras, mais uma de
suas obras: um belo livro: A arte de J. Borges – do cordel à
xilogravura. Trata-se de edição primorosa, patrocinada pelo
Funcultura Pernambuco, a Secretaria de Educação e Cultura
do Estado e Banco do Brasil. José Octavio Penteado, Tânia
Mills e Pieter Tjabbes são os curadores. O livro traz textos de
Antonio A. Arantes e Pedro Okabayashi, antropólogos, que assinam
o ensaio que dá título à edição, em
que narram a trajetória bem sucedida do gravador; de Giuseppe Baccaro,
artista plástico de Olinda, sobre a xilogravura popular no nordeste
desde a sua origem; e de Leonardo Dantas Silva, jornalista e historiador,
que disserta sobre os ilustradores do folheto popular. Além, é
claro, de “J. Borges por ele mesmo”, texto das memórias
de Borges, adaptado de Memórias e contos de J. Borges, outra obra,
escrita e editada pelo próprio. Aqui ele revela: “Com 21
anos ingressei na vida literária do cordel, comprando e vendendo
nas feiras e praças da região. Logo em seguida escrevi o
primeiro cordel, e, como não tinha recurso para publicá-lo,
demorei ainda uns oito anos para ver o meu nome como autor de um folheto,
o que para mim seria um sonho realizado. Em 1965 foi que consegui, e fui
muito bem-sucedido, a prova disso é que passei vinte anos no ramo
pelas feiras e praças onde existia passagem de gente.” E
por aí vai.
O obra obviamente é ricamente ilustrada com reproduções
das gravuras de Borges. Seus temas, incluindo os de seus cordéis,
vão desde as tradicionais figuras míticas do sertão
nordestino, sobretudo as do período do Cangaço, como Lampião
e Maria Bonita, a cenas do cotidiano e festas folclóricas tradicionais
de sua cidade natal. Não faltam temas atuais como “A psicanalista”,
que retrata um típico consultório em que figuram fantasmas
e desejos da paciente retratada no divâ. Sem preconceito religioso,
J. Borges, com a mesma arte que registra a “A missa do vaqueiro”,
com direito a padre segurando o cálice sagrado dos católicos,
registra também “O terreiro de macumba”, com tambores,
preto-velho e mãe-de-santo. Em outra xilo, colorida, a homenageada
é Iemanjá. No trabalho intitulado “Sem preconceito”
a cena é de um arrasta-pé: um homem branco e uma mulher
negra formam um casal enquanto o outro é formado por um homem negro
e uma mulher branca. “A moça que virou cobra”, “Os
pescadores” e “A morte da mulher boa” são outros
títulos dentre tantos. Motivos fantásticos e oníricos
também são inspiração, como “O bicho
de sete cabeças”, “A briga dos dragões”,
“O forró dos bichos” e “O aniversário
do macaco”.
O arte de J. Borjes é uma arte de sonhos que num lúcido
paradoxo nos remete à nossa própria realidade. J. Borges
é uma das grandes expressões do Brasil de raiz.
Página produzida pela
Câmara Brasileira de Jovens Escritores / Rio de Janeiro
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