Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

A cidade, morada de hoje em dia

 

 

Tenho saudades de um tempo em que não se precisava fechar a porta com tantas trancas e tantas fechaduras. Só se encostava ou quando muito se tramelava e dormia-se tranquilo, até os primeiros raios do Sol.
As janelas, estas então ficavam abertas. Não havia perigo e nem essa imensidão de pernilongos, pois os riachos ou as sangas eram povoadas pelos sapos, pelas pererecas que gentilmente alimentavam-se das larvas, fazendo de forma gratuita o controle da bicharada.
Um tempo em que todos se conheciam. Quando chegava um estranho na Villa logo era o assunto geral e se ficava sabendo o que tinha vindo fazer, em casa de quem estava hospedado... Assim, deixava de ser um desconhecido.
Nas noites enluaradas faziam-se longos percursos para visitar um amigo ou os compadres que moravam  quilômetros de distância. Não havia luz elétrica e também se andava a pé. Sem problema algum. Quando muito uma vara na mão, para afugentar algum cachorro mais audaz que resolvesse  incomodar com seus latidos impertinentes a quem passava na rua. Querendo dizer: “Aqui quem manda sou eu”.
Não era preciso recolher as cadeiras da área, nem os calçados que pousavam pelo lado de fora da residência. O perigo era só se uma chuva que não tinha avisado que viria, resolvesse de repente molhar o que encontrasse pelo caminho.
Nos primeiros clarões majestosos do Sol todos se levantavam. Nas lidas diárias, ainda no escuro quando muito tinham  a mão, um candeeiro para ir à estrebaria tirar o leite das vacas. Depois de ordenhadas era preciso soltá-las no potreiro, para que pastassem, tomassem a água límpida do riacho ou da sanga. Assim o leitinho das crianças e para o café da manhã, estava garantido. O animal, também respeitado nas suas necessidades básicas.
Quando o dia com majestade clareava, a bicharada estava toda tratada. Só então se vinha para dentro de casa, onde o fogo aceso no fogão a lenha já fumegava a tempo. A chaleira de ferro chilreava. Tomava-se então o chimarrão para depois com a água fervendo do bule esmaltado (os mais sofisticados tinham um ramo de flores em alto relevo). Este ficava em cima das rodinhas da chapa já querendo avermelhar, passava-se então o café. O gostoso café de pó, passado, no coador de pano.
 O Sol então já iluminava a querência toda, entrando por todos os cantos da casa, pois todas as janelas estavam abertas.
Eram outros tempos. Com a recordação, restou só à saudade.
A cidade cresceu o povo não é mais o mesmo. Alguns querem uma vida fácil sem compromisso. São eles uma minoria, pois grande parte da população é de gente de Bem.
Mas esses poucos atrapalham o Bem Viver.
É preciso cautela, cuidado. Tudo tem que estar bem iluminado. O escuro transmite medo. Os pátios das casas também não podem ficar na escuridão. A casa bem trancada. Portas, e janelas fechadas e ainda com um bom cadeado.  Se for um condomínio com o porteiro e identificação na entrada. Se for um prédio é preciso permissão na portaria para entrar. Controle até eletrônico.
Não se conhece mais nem o vizinho, morador do lado. São quase todos desconhecidos e o que prevalece é a desconfiança.
A cidade deixou de ser acolhedora, de ser a extensão da própria casa. Ser toda ela, a moradia maior. Como diz o poeta: “Sinto saudade dos tempos de outrora, das noites enluaradas e das serenatas”!
A lua não consegue mais com a sua majestade deslumbrar, ser a primeira na paisagem, as luzes são muitas. Como estão bem mais próximas, são elas que prevalecem.
É preciso encarar a realidade de viver em tempos atuais. É preciso supor que a humanidade evoluiu e, que hoje é bem melhor do que já foi. É preciso ter coragem e achar que mesmo com a porta bem trancada, se vive em Paz e, ainda rezar para que nada de mal aconteça. É preciso ter fé que a proteção de Deus e, das autoridades constituídas nos sirvam de alento.
Se as crianças não conseguem mais brincar na rua, nem na calçada, precisamos levá-las aos parques. Jogar bola na rua, de chão batido, quando muito que se tinha era a reclamação de que as flores foram amassadas ou quebradas.  Sentar no meio fio, chegar à madrugada conversando, também deixou de ser um programa, ficou como coisa dos velhos tempos.
Há tanto carro, disputando o lugar com os seres humanos. Há tanta cerca com portões eletrônicos, com portas de tantas senhas que ficou difícil chegar à casa de alguém amigo ou de um conhecido de muito tempo ou do dia de ontem.
Restou à saudade de um tempo em que apenas se batiam palmas e, logo se ouvia com uma voz sonora, transbordando de alegria um:
- Se achegue, a casa é tua.
Em frente da Televisão se sabe o que vai pelo mundo. Conhecem-se tantos lugares. Mas do outro lado do muro, não se sabe mais quem é o morador, o que ele está precisando. Embora, no adágio popular, esse ainda continua sendo o primeiro parente.
Saudade de quando se passava por alguém e se cumprimentava:
- Bom Dia, com um sorriso se ouvia a resposta e ainda acrescentado de um aperto de mão, com um:
- Como vai?
Hoje, de uns 10 “bom dia!” ou “boa tarde!”, se receber um de volta será um grande prazer. Sinal de que alguém ainda ouve o outro. Resta ainda a esperança. Fui ouvido.
Age-se como que ser um Humano fosse ser um inimigo, mesmo pertencendo à mesma tribo irmã. A humanidade precisa ser com urgência resgatada. Ela está necessitando de carinho e, esse só depende das atitudes dos mesmos. Os humanos são seres frágeis, não vivem sozinhos. Assim é preciso compartilhar a confiança, o amor um pelo outro mesmo que seja uma tarefa das mais difíceis.
A cidade, ou a vila, o lugar de moradia de gente que é humana, e pertence a essa designação, deve ser um espaço acolhedor, um espaço com muito calor, produzido por esses mesmos seres que se intitulam de Seres Maiores. Os únicos que sabem chorar e sorrir. Uma das manifestações de convivência.
A cidade precisa voltar a ser como já foram as primeiras árvores que serviram de morada aqueles que iniciavam a sua caminhada pelo Planeta Azul. Engatinhando ainda na busca da própria humanização, mas já apreendendo a conviver uns com os outros. Precisamos humanizar a cada um de nós para a cidade ser a casa comum dos seres humanos.

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos que copiam os sonhos" - Edição 2018 - Novembro de 2018