Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

Contos que foram feridos em seus sonhos

 

 

         

                Contar uma história exige de seu escrivante um “mais além” que habita o seu interior dormente e, por natureza, noturno. As imagens aparecem de forma distorcida, causando-lhe um desconforto espiritual, sobrenatural. Pessoas, ambientes, sensações dispersas e sentimentos habitam lugares que são impossíveis de serem visivelmente detectados pela potente mente humana do sonhador. O sonho se mistura a dados do tempo presente, mas se desfigura num passado transfigurado, repleto de distorções, divagações e informações que envolvem a vida e a morte. Sonhamos a morte de pessoas que estão vivas. Sonhamos a vida de pessoas que estão mortas. Sonhamos trapos dispersos de histórias sem nexos que definem e traduzem a nossa impotente e frágil “sabedoria diurna”.
                Freud sonhou muito para escrever sobre o significado dos sonhos, mas faltou-lhe um “mais além”, algo que não se explica, está lá entre as palavras, as imagens e o vácuo vazio de sentidos, repleto de múltiplos sentidos. Uma complexa armadilha que para um bom escavador como o foi Freud, faltou-lhe tocar neste “fundo”, nesta “falta de” que habita no “mais além” e que jamais ninguém o encontrará porque ele está lá invisivelmente longe de nossos olhos humanos. O sonho é movido por esse “mais além” que sempre escapa do próprio além, e por sermos seres portadores de uma inquietude finita, falta-nos essa “potência” que está a passear e a vaguear pelas mentes humanas.
                O sonho nos tira de nossa medíocre materialidade, de nossa infame vida fixada por nossos interesses, e nos avisa, por meio de um turbilhão de ideias dispersas e simbolicamente seguras, prontas para dar ao seu portador, elementos que faltam em sua “vida diurna”. No entanto, muitas vezes Freud teve que recorrer à Literatura, mãe das coisas ditas imaginárias, mãe também das coisas passadas à limpo e à pente fino que nenhuma outra ciência é capaz de expor sob a sua escrita interpelada por ingredientes históricos ditos em forma de outros ditos diamantes. Sonho e Literatura se aproximam do escavador, e num namoro certo tornam-se parentes unidos por esse destino: o de tentar tocar o fundo das coisas noturnas que se afastam das coisas diurnas.
                O escrivante, narrador deste conto escreve movido por um sonho que à noite o visitou como um “morcego sem asas” a espreitar a sua harmonia de investigador das coisas difíceis de serem decifradas e representadas. O escrivante estuda o trauma na literatura e, de repente, é surpreendido por um sonho que ele não consegue decifrar, ou de repente, ele sabe muito bem que o que sonhou é fruto de sua imaginação, e diga de passagem, que a sua vida é uma imaginação como todas as demais vidas são inventadas por seus respectivos sujeitos. Há alguém muito famoso que escreveu sobre supostas tradições inventadas, Benedict Anderson é o seu nome. Ao escrever o livro Comunidades Inventadas, ele se afasta do conhecimento eurocêntrico, um bom sonho que se tornou realidade, uma boa leitura que nos liberta da noção tradicional de nação, fronteira e historicidade. Ele traduziu bem o sonho noturno, e conseguiu dá luz à humanidade diurna.
                Mas, os sonhos só se transformam em realidade ou os sonhos só podem ser traduzidos quando o homem é capaz de conservar a sua riqueza cultural. Com um rápido cochilo, tudo pode ir abaixo. E foi exatamente num desses inevitáveis e imperdoáveis cochilos que o mundo viu um sonho ser queimado: Na noite do dia 2 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções atingiu a sede do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, Brasil, destruindo quase a totalidade do acervo histórico construído ao longo de duzentos anos, e que abrangia cerca de vinte milhões de itens catalogados, itens sagrados e históricos, patrimônio da humanidade que a própria esqueceu de fixar atentamente os seus olhos, pois um vento corruptível estava a assoprar naquelas ditas terras brasilianas... E por falta de sabedoria, os governantes daquela terra, preocupados com os seus próprios interesses, cruzaram os braços e nada fizeram para impedir tal tragédia. Além do seu rico acervo, também o edifício histórico que abrigava o Museu, antiga residência oficial dos Imperadores do Brasil, foi extremamente danificado com rachaduras, desabamento de sua cobertura, além da queda de lajes internas. O que levou à ruína, desaparecimento e perda total de parte da história da humanidade que lá estavam. O sonho ruiu… na dormência de homens gananciosos, a história foi novamente ferida em sua vasta documentação. Calamidade! Malvadeza! Estupidez! Não! Falta de vigília.
Quando um povo não vigia os seus governantes, eles fazem o que querem! Quando um povo não vigia os seus acervos culturais e históricos, esses tornam-se frágeis, fáceis presas da destruição. O sonho destruído, mas que precisa ser novamente sonhado, e a memória agradece.
                É preciso agora sonhar novamente. Acordar-nos desse pesadelo cometido por nossos governantes, representantes de nós mesmos, eleitos com o nosso suor e trabalho, e com a ajuda do mundo tentaremos reconstruir a imagem de nossa história que recorrerá à fotografia que milhares de homens, mulheres, crianças e idosos tiraram quando por lá passaram. A imagem reconstituirá novamente o nosso belo sonho, e a história, mesmo que ferida tragicamente, erguer-se-á das cinzas… Pois as novas gerações precisam saber deste grande sonho bem sonhado, desta memória documental que guarda nossa força, nossa alegria de sermos seres históricos, sujeitos do tempo, indivíduos que jamais esquecem que sempre sonharão, todas as noites, custe o que custar, porque é pela noite que tudo se anuncia, e o dia nasce revestido de uma cor sonhada durante a madrugada.
                O conto foi ferido em seu sonho, mas sempre haverá tempo para o homem se corrigir de seus próprios erros, seus enganos, de seu farto perdido desejo capitalista. E tenho certeza, enquanto narrador deste conto sofrido, que, em breve, por meio do sorriso das palavras que alegremente são tocadas pela literatura, possa fazer desse mundo um sonho melhor, onde o presente seja o guardião do passado, para que o sonho do futuro da humanidade não venha a ser ameaçado por “pesadelos”, inimigos dos nossos sonhos que vivem a espreitar-nos como fantasmas do desespero o sono do justo pensador.

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos que copiam os sonhos" - Edição 2018 - Novembro de 2018