José Faria Nunes
Caçu / GO

 

 

Apreensão de um universitário

 

Por razões óbvias sou um dos primeiros a deixar a sala. Tenho urgência de chegar à Praça Cívica, no centro da cidade, de onde seguirei para meu bairro, o Riviera. Após mim sai o restante da turma do curso noturno na faculdade, a escola de Direito mais tradicional da capital. 
Entre os que tem carro, alguns dirigem-se ao estacionamento privativo ao lado da escola, outros para o gramado feito de estacionamento público em frente à faculdade, prática constante, embora normativamente vedada. A regra parece não valer para alguns alunos das letras jurídicas.
Os alunos despossuídos do privilégio de terem veículos próprios dirigem-se ao ponto de ônibus da frente da escola, ponto de dispersão para os diversos bairros da cidade. 
Apesar de todos os ônibus daquele “ponto”  passarem pela Praça Cívica, de nada me valem, vez que naquele horário já saem lotados da praça Universitária e não há como descer na outra praça onde passa o ônibus para meu bairro. A opção é seguir a pé e torcer para que chegue a tempo ao “ponto” dos Correios na praça.
Agora apenas o toc-toc dos calçados apressados no asfalto. Tenho que acelerar para não perder o último ônibus da noite na Praça Cívica. 
Ao chegar à rua 10, na saída da Praça Universitária, percebo vestígios das manifestações estudantis daquela tarde contra a corrupção, em defesa da ética, moralização política e dos direitos humanos, contra a discriminação racial e de gênero, respeito e valorização das diferenças, com maior destaque para a mulher negra e pobre das periferias. 
Nas calçadas e arredores restam fragmentos de faixas e cartazes deixados pelo confronto entre policiais militares e manifestantes, entre eles alguns políticos de oposição.    
Na condição de jornalista eu me fiz presente entre os manifestantes cobrindo o evento. Por pouco não sobraram cassetetadas para mim. Quanto às bombas de gás, o jornal me havia prevenido para ter comigo um pano embebido em água para eventual necessidade. O fotógrafo de meu jornal teve sua câmara apreendida por um policial que retirou o filme, embolou-o e o jogou ao chão, sem condições de aproveitamento. O jornal teve que se valer de fotos de uma agência que também fez a cobertura. 
Com a mente mergulhada na confusão da tarde nem percebo que já deixara para trás a ponte da Alameda Botafogo e a praça da Catedral. 
Avisto o prédio do Beg e o do Tribunal de Contas do Estado no início da praça Cívica. Espero chegar a tempo no ponto de ônibus. Tenho que me apressar um pouco mais. Acelero os passos.
O relógio, implacável, mostra que os ponteiros já ultrapassaram a marca da meia noite. 
De costume meu ônibus entra na praça pela rua 83, contorna parte da praça Cívica, desce pela av. Araguaia até a av. Paranaíba, por onde segue até a av. Tocantins, retornando à praça Cívica. Pára na esquina dos Correios, o ponto onde tenho que chegar a tempo. Desse ponto o ônibus termina o contorno da praça e, de novo na Rua 83, segue para o meu bairro, o Riviera. 
Antes de chegar ao Riviera o ônibus passa pelo setor Sul e depois, pela av. B, passa pelo Jardim Goiás, pelo estádio Serra Dourada. Passa entre a fazenda dos “Lousa” e os bairros Novo Mundo, Água Branca, Jardim Brasil e só então entra no Riviera, a seis quilômetros do centro da capital dos goianos. 
Se perder o ônibus, terei que seguir a pé todo o percurso, o que não farei em menos de uma hora, com caminhada acelerada. 
E o pior, naquela hora da madrugada, são os riscos da violência já rotineira na capital. E eu, que detesto arma de fogo, não pratico nenhum tipo de defesa pessoal. Já comecei aulas de capoeira, mas não passei da primeira semana. Minhas condições físicas não me favorecem a isso.
Ao entrar na praça Cívica avisto uma sequência de ônibus a cumprir os últimos horários daquela noite. Aliás, daquela madrugada. 
Chego ao “ponto” de acesso à av. Araguaia, pergunto a um casal se o “Riviera” já passou, ao que sou informado de que ele havia passado fazia uns minutinhos. Aperto ainda mais os passos. Tenho que chegar ao “ponto” dos Correios antes que o ônibus termine a volta pela av Paranaíba e chegue à Praça.
À esquerda estão o museu Zoroastro Artiaga, o Fórum Judiciário, o Palácio das Esmeraldas, atrás deste o Palácio Pedro Ludovico, também chamado de Centro administrativo. Por último o Palácio da Justiça e quase em frente a mim, o Palácio das Campinas. À minha direita a avenida Goiás, a de ilha mais larga do centro de Goiânia, apresenta-se deserta. Nenhum veículo, nenhuma viva alma.
Agora estou diante do Palácio do TRE, na esquina da av. Tocantins. Do outro lado está o prédio dos Correios e no pondo de ônibus encontram-se três deles "pegando" seus últimos passageiros da noite. 
O semáforo exibe sua luz vermelha. Na cabeça, indagações: um daqueles ônibus é o meu? Avanço ou não o sinal vermelho? Chegarei a tempo?

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos de Outono" - Maio de 2018