Maria Ioneida de Lima Braga
Capanema / PA

 

O último dia de Eulália 

        

 

Eulália estava sentada num banco, embaixo de uma árvore de Pau Brasil, no jardim do hospital, aonde estava internada há quase um mês. Tivera mais um discussão com a família. A vaidade, a revolta, a decepção e o ódio a impediam de perceber com clareza as possibilidades e isso a consumia. Aquela manhã de domingo arrastava-se. Como mecanismo de defesa põe-se a lutar contra os seus demônios. Eulália aos vinte e seis anos de idade descobriu um câncer ósseo e enfrentou um tratamento cirúrgico para a remoção de um tumor na perna. Enfrentou quimioterapia e a radioterapia  que foram  utilizadas em combinação à cirurgia.  Venceu com coragem todos os tratamentos alternativos, porém os mesmos falharam e a amputação da perna seria inevitável, pois haviam nervos e vasos sanguíneos comprometidos. E quando recebeu dos médicos tão grave notícia, ela rebelou-se e travou sérios desentendimentos com a família - obstinada em não permitir -, porque não suportaria ver-se mutilada. Então o pesadelo dessa possibilidade tornou-se maior que a doença. Um carrinho de sorvete estava parado, lá embaixo na rua e a presença daquela menina entre as crianças que o rodeavam, chamou-lhe a atenção. O lenço na cabeça e o vestido branco, marcado na cintura por um laço de fita rosa, davam-lhe um ar gracioso.  A menina inesperadamente correu de lá e foi logo se sentando ao seu lado no banco. Sua desenvoltura e espontaneidade surpreendeu Eulália.
- Oi, eu sou Margarida. Eu tinha leucemia. – Disse já muito à vontade
 - Mas, você parece ótima! Qual sua idade? – Perguntou Eulália fazendo um muxoxo – Totalmente desinteressada.
- Oito de abril hoje, né? Tô fazendo oito, ... Ahn! Eu agora, estou muito bem mesmo, sabia?.
A menina não dava sinal de querer afastar-se. Falava. Falava. Como se quisesse dizer tudo e não tivesse tempo depois. Eulália esfregava as mãos, desesperada para desviar o assunto de si mesma. A menina ignorando-a desfechou sem rodeio “deixa cortar tua perna, boba... Aceita a realidade... Além do mais, as próteses hoje em dia parecem perna de verdade”.          Isso atingiu Eulália em cheio, como nunca alguém havia conseguido. Embora irritada ela ficou boquiaberta. Pensou que absurdo aquele pedacinho de gente ter tantos argumentos e tão convincentes. E ainda tentou ser indiferente a tal proximidade, mas desarmou-se e foi interessando-se extasiada, mas a menina retirou-se inesperadamente, assim como chegara. Eulália ao ficar sozinha estava muito confusa e ainda relutou. Mas, depois de muito pensar, algo milagrosamente aconteceu e já começou a ver a vida com novos olhos e boa vontade. A partir dali Eulália nunca mais foi a mesma.
Dois meses depois daquela surpreendente manhã, Eulália finalmente estaria deixando o hospital com uma de suas pernas amputada, mas recebera a garantia de cura. - Envergonhada não falara da menina para ninguém - Sentia-se feliz e contemplou por cima das janelas a claridade da manhã magnífica.
- Vamos? – Disse a mãe radiante - entrando no quarto e trazendo uma cadeira de rodas.                                        O câncer no auge da vida, e no começo de sua carreira profissional como juíza, fora um duro baque. Margarida foi um anjo que cruzara seu caminho, naquela manhã de domingo. A menina dera-lhe a força e o incentivo necessários para continuar lutando. Se assim não fosse certamente não teria conseguido.
Já à porta de saída cruzaram com uma mulher que parou para cumprimentá-la.
- Bom dia Doutora... A senhora está ótima – Hesitou – Não se lembra de mim?
- Não! Sinto muito – desculpou-se – Sem graça.
- Já nos vimos aqui no hospital. Minha filha que esteve internada, mas já tá com quase três meses que morreu. Foi  dia oito de abril. Fico feliz pela Senhora. Pena que minha Margarida coitadinha, não conseguiu! Depois de três anos de luta e esperando um transplante que não veio - continuou a mulher sem conter as lágrimas - Os médicos fizeram de tudo, mas o câncer venceu.
- Margarida...? Como assim? – Perguntou Eulália intrigada.
  - Sim! Dia oito de abril. A minha Margarida era alegre, confiante. Detestava me ver triste. Ela nunca se entregou a doença.  Sabe?
– A senhora disse dia oito de abril. Tem certeza? – Perguntou Eulália - mal disfarçando a inquietação. E que Margarida nesse dia.…! É isso mesmo?
-Sim. Como eu iria me esquecer? Era domingo. Ela se foi pouco depois da meia noite. A minha menina estava fazendo oito anos,  nesse dia 
Eulália empalideceu.
- Não está passando bem? Posso ajudar?
Eulália já não ouvia...  Abre os olhos... Aquele seria “O último dia de Eulália”...
As folhas de outono caiam serenas despindo as árvores, que se tingiriam de verde para recomeçar a nova estação. A claridade do lindo céu convida para a outra vida, 
-  Eulália... Ahn?   
E mergulha.   

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos de Outono" - Maio de 2018