Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Uma crônica feita de vozes 

        

 

Desta vez, quero escrever diferente, mesmo que eu venha repetir o que venho falando há anos sobre a difícil tarefa de escrever para leitores que não os conhecemos. Quero escrever algo que eu possa também ler, que eu possa ser o principal dos leitores. Que a minha leitura deixe de ser apenas um texto escrito, e passe a ser um texto inscrito na vida do leitor que ora esteja a ler esse amontoado de signos, fruto de minha experiência com a vida, com as palavras, com a arte de contar e perceber-se em sua escrita, pois toda escrita carrega dentro de si, rastros-resíduos ou fragmentos residuais de quem pela palavra é seduzido.
Desta vez, quero dirigir-me à sedução: imenso prazer que as pessoas sentem quando algo lhes tocam. A leitura quando dialoga com o leitor, atravessa a ponte, e lá adiante clareia toda uma floresta escura com o seu brilho iluminativo. Para seduzir o leitor dessas minhas cansadas travessuras com a escrita, quero tocar no leitor no que você tem mais de precioso: seu tempo.
Ao invadir seus corridos segundos, imagino-lhe que seja alguém coberto de uma incompletude e incerteza diante das coisas, da vida e das ditas verdades que fixam a vida humana na terra. Não quero lhe falar de política, haja vista que não existe escrita fora desse contexto cultural e histórico que carrega dentro de si o político e o social. Mas, posso falar de uma forma diferente, a ponto de seduzi-lo (la) a ler o meu texto que, como todo texto, é formado por outros textos, contaminados por vozes que, nem eu mesmo percebo quando elas aparecem. São sempre intrometidas, e aparecem às vezes pelos caminhos da consciência, às vezes inconscientemente… Por mais que não as queiramos usar, elas acabam nos enrolando em suas teias discursivas, tornando impossível textualizar ou discursar sem vossas presenças. Porém, há vozes portadoras de várias formas ideológicas de ser e sentir, alienadas por estruturas que acabam cegando o escritor e, ao mesmo tempo, seus respectivos leitores, pois pertencem às mesmas formações ideológicas permeadas por um sistema que aceitam certas formas de ver e sentir as coisas. Porém, há outras vozes que, ao caminharem por outros caminhos, detectam certas danificações do sentido empregado por certos diálogos que são formados por estruturas repletas de preconceitos, ideias ultrapassadas e até mesmo legitimadas pela violência que tanta a história humana vem combatendo há séculos, desde as desastrosas Primeira e Segunda Guerras que ocorreram no habitável mundo dos seres pensantes. Essas vozes que detectam facilmente esses nefastos ingredientes discursivos, armam-se contra essas outras vozes, e, em constante luta, defendem seus ideais.
Tenha cuidado, ouvinte leitor, para não estar do lado errado. Há ideias que nos fazem mal e distorce a nossa personalidade humana. O caro escritor, há alguns anos atrás, achava que estava do lado certo. Mas depois de ter alcançado alguns degraus da escada do saber humano, mudou de lado. E, hoje, respira, não sua antiga fórmula (fórmula estragada e defeituosa) de ver a vida, mas uma nova forma empoderada por vários conhecimentos que potencializaram seus conhecimentos prévios acerca de política, arte, literatura, história, psicologia e outras áreas do saber. Fico a imaginar o passado, e sinto dentro de mim um certo repúdio por não ter conseguido ver o que eu tinha o dever de ver, mas, de repente, uma voz interior, responde aos meus recalques: “Você pensava, hoje não pensa mais. Feliz tu és porque foste tocado pela consciência, oriunda da experiência e aventuras pelo encantado vasto mundo do desconhecido, feitas por meio da leitura, sedimentadas pela ponte intersemiótica e interdiscursiva que tocam a quem se permite ser encorajado por seus desejos e impulsos de ir adiante, sem medo do muro que separa os homens entre si: a linguagem. Sabemos, pois, que o homem é separado por um Grande Muro: o da Linguagem, e que é por ela que ele cria seu próprio “muro”. Tenhamos cuidados com esses “muros”, porque foi desta forma, que existiram homens como Hitler e Salazar e impuseram, por meio da força do individualismo doentil e insano, movido por uma ideologia que desrespeitou a heterogeneidade cultural e linguística de um povo, ferindo o código que, desde os primórdios pensadores e contemporâneos construtores do saber/poder, poetas e narradores do tempo e da vida escrevem sem imaginar que , algum dia, a razão fosse ferida em sua estrutura. Trago, à tona, nomes ou vozes de personalidades que fizeram e continuam a fazer na formação de leitores ascendentes/descendentes, referencial e fundamental para lê-los, evitando, desta forma, estarem incluídos na relação dos primeiros leitores acima mencionados: leitores alienados e portadores de um discurso bêbado, monológico, hegemônico, centralizador, colonialista e contaminado por uma ideologia desprovida de sentido. Entre tantas vozes que mudaram o mundo através de sua escrita, citemos: Platão, Aristóteles, Sócrates, Descartes, Durkheim, Einstein, Galileu Galilei, Copérnico, Saussure, Marx, Althusser, Mikhail Bakhtin, Júlia Kristeva, Derrida, Nietzsche, Deleuze, Espinosa, Foucault, Lévinas, Sigmund Freud, Melanie Klein, Walter Benjamin, Walter Adorno, Walter Mignolo, Anibal Quijano, Salman Rushdie, Jacques Lacan, Schopenhauer, Heidegger, Morin, Sartre, Husserl, Rosseau, Stuart Hall, Canclini, Milton Santos, Edward Said, Gayatri Spivak, João C. Tedesco, Edward Glissant, David Harvey, Vygotsky, Piaget, Wallon, Ângela Kleiman, Michel Pêcheux, Antony Giddens, Seligmann-Silva, Beatriz Sarlo, Pierre Nora, Le Goff, Eric Hobsbawm, Bauman, Homi K. Bhabha, Maurice Halbwachs, Maurice Blanchot, Henri Bergson, Paul Zumthor, Paul Ricoeur, Paulo Freire, Mia Couto, Anibal Machado, Otávio Paz, Antônio Cândido, Boaventura S. Santos, Frantz Fanon, Hannah Arendt, António Lobo Antunes, Paul Celan, Primo Levi, Florbela Espanca, Cecília Meireles, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Castro Alves, Fernando Pessoa, Marcel Proust, Dostóievsky, Kafka, Camilo C. Branco, Manuel Bandeira, Carlos D. de Andrade, Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Eça de Queiroz, Jorge Luís Borges, Humberto Eco, Noam Chomsky, Martin Luther King, Nelson Mandela, Judith Butler, etc…
Em meio a tantas essas vozes que se espalham por várias bibliotecas do mundo afora, reconheço, como humilde leitor que quando adentro no espaço de leitura, ou seja, de uma boa biblioteca, percebo que, não basta prateleiras repletas de livros. É preciso de bibliotecários compromissados, alegres e sorridentes, disponíveis e competentes, movidos (das) por uma suave leveza poética, que conduz o faminto leitor a um lugar onde ele possa encontrar o livro que ele deseja ler, e esse livro que ele deseja lê-lo só a ele chegará por meio das dignas mãos de bibliotecárias brilhantes, como eu pude encontrar em duas bibliotecas em Portugal. Falo da Biblioteca de Caldas da Rainha, onde eu pude encontrar “verdadeiras rainhas” que nos atendem com um sorriso aberto nos lábios e uma palavra imediatamente dita: “Em que posso ajudá-lo (la)?”. Daí por diante, o mundo do qual Paulo Freire tanto fala em seus livros, em seus discursos, estende-se por sobre a pedagogia libertária…
Dai ao ser um bom livro, e dele sairá um grande homem…
Dai à palavra a livre escolha de caminhar, crescer, modificar, pois dela depende o caminho onde o mundo vai dar…

(Às bibliotecárias portuguesas, em especial, àquelas da
Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha
)

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos de Outono" - Maio de 2018