José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

 

O diário de Epicuri

 

 

          

         Eu estava no colégio, a última aula da noite findou, o professor e os colegas se foram, mas eu quis ficar um pouco mais debruçado na carteira pensando na vida. Só percebi que adormeci quando senti um toque de mãos na minha cabeça.
          Na manhã daquele dia eu passara por uma complicada experiência com Deus, desde então, minha alma se esforça para começar tudo de novo.
          Tudo começou quando criei conceitos novos para se fazer um diário. O meu método abrangia a vontade e o desejo, o sonho e a imaginação. Situações do cotidiano que, se não aconteceram realmente, aconteceram na minha cabeça. É um tipo, talvez, absurdo. Registrar não a realidade, mas o que gostaria que acontecesse: prazeres, honrarias, desforra contra inimigos, etc.
          Certa vez revelei a existência do meu diário a um amigo abade do Mosteiro da Paz.
          — Hoc opus, hic labor est! — reprimiu-me em latim o abade Pelosso. — Aí é que está a dificuldade. Caro Epicuri, diário fictício é instrumento de confusão. Quando não há realidade, há sonhos; quando passa dos sonhos, há delírio; e quando passa dos delírios, há loucura.
          Afastei-me do incauto e decidi manter meu diário em segredo.
          Sempre pensei que nossa mente e alma estão carregadas de impressões tanto do mundo real como do imaginário, reagimos tanto com um beijo apaixonado como na imaginação de sermos beijados. Creio que as duas situações são reais, porém em dimensões diferentes. Daí veio as advertências de Jesus quando disse: “qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura no coração, já adulterou com ela.” Imaginar é tão grave quanto agir.
          Meu diário deveria ter um título, fiquei entre: “o que sou sob os véus”, “minha essência” e “minha vida secreta”. Escolhi: “minha vida secreta”.
          As primeiras páginas eram ingênuas, eu fazia as anotações de manhã. Na minha vida secreta me sentia um sol num mundo de amor platônico, uma espécie de mago dotado de dons, além de dono de um império de luxo, fantasia e felicidade. Era realizado no amor por uma princesa; tinha domínio das ciências, artes e mistérios; ora era um astro que emocionava o mundo. Era um mundo brilhante e perfumado.
          Com o tempo o diário se transformou, entrei numa complicada segunda fase. Passei, então, a fazer as anotações ao anoitecer. Gostaria que fosse a fase da maturidade, mas preferi chamá-la de fase dos dramas. A razão é complexa: é que passei a ser um sol vencido, não passava de uma réstia nas nuvens densas de chuva. Entrei num mundo novo, terra dramática e de competições.
         - Estás doente? - Despertei-me na sala de aula, com uma voz. Vi um senhor com vestes dos antigos padres. Pensei: “talvez seja um professor que não conheço”.         
          - Minha alma adoece - disse com os olhos lacrimejados, mas ele silenciou.
          Pensei: “desabafar meus dramas a um estranho? Não! Seria como abrir novos sangramentos”.  Descemos pela escada de madeira, mas eu não quis falar sobre o meu diário.
          Na fase dos dramas descobri que eu era uma dualidade, como se duas almas opostas se enfrentassem nas cavernas do meu cérebro. Eram as duas faces de minha alma: o “eu luz” versus o “eu trevas”. Meus registros se alternavam entre o bem e o mau. Enquanto o “eu luz” impunha limites o “eu trevas” se entregava aos estímulos sem lei.
          Viver nos sonhos da “minha vida secreta” era tão excitante, que se fosse possível, eu morreria nesta vida para acordar dentro das minhas fantasias, até morrer dentro dos sonhos. Enquanto na vida real era obrigado a encenar uma normalidade, à noite abria meu diário e libertava meus sentidos. Aos poucos o “eu luz” foi perdendo para o “eu trevas”, revidando insultos, resolvendo as desavenças com violência, trocando o perdão pela vingança, a pureza da mulher pelo delírio dos sentidos. Passei a amar essa vida secreta, ao ponto de não mais precisar do diário de papel para me sentir dentro dela. Num segundo me transportava e me deleitava. Quando as pessoas se veem em dramas, nem precisam de um diário de papel, criam mentalmente páginas de horrores.
          Meu diário era cheio de máculas e o arrependimento começou a vir, parar com as anotações parecia a solução, mas eu estava ajustado demais à “minha  vida secreta”. Não raro eram as situações em que não decifrava em que mundo eu estava. Temia não conseguir manter fechada a porta que separa as duas realidades, e tudo que existisse na “minha vida secreta” eu viesse a praticar na realidade.  
          Na angústia decidi entregar o diário a Deus. Mas, aonde está Deus? Dizem que está em todo lugar. Todo lugar era vago, eu precisava de um local preciso. Uma igreja? Qual? Há milhares e distintas, até conflitantes. Lembrei-me de que Jesus gostava das montanhas.
          Quando descíamos pela escada, o padre disse:
          - Deus não quer que vivas de ilusões, o sábio a cada dia constrói uma realidade linda.
          Acho que ele lia meus pensamentos, mas eu não queria ouvi-lo, pois meu problema era obter uma resposta de Deus.
          Naquele dia eu faltei ao trabalho para subir numa colina da cidade, tirei meu diário da mochila e deixei-o na relva, ao término de uma oração vi as folhas sendo viradas por uma brisa misteriosa. Creio que era Deus lendo! Esperei uma resposta, que não veio, ao menos como esperava. Desci melancólico.
          O dia foi tenso, nas aulas da noite eu só pensava naquela tentativa de contato com Deus.
         Ao aproximar da porta de saída do colégio virei para me despedir do padre, mas ele tinha sumido. Senti arrepio quando vi numa parede o retrato do patrono do colégio morto há anos: era o Regente Antônio Diogo Feijó. Estremeci, pois era o mesmo padre que falava comigo.
          Quanto àquela aparição, ainda hoje me pergunto: se foi real, ou fantasia do meu diário? Só sei que de alguma forma, foi a resposta de Deus. Suas poucas palavras não saem da minha cabeça: “Deus não quer que vivas de ilusões, o sábio a cada dia constrói uma realidade linda”.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos Premiados" - Edição 2019 - Abril de 2020