Tânia Mára Souza Guimarães
Uberaba / MG

 

 

Game over

 

A casa pequena, embora bastante organizada, não permitia que cada um tivesse seu cantinho de trabalho em cômodos separados. Desta forma, mãe e filho adolescente compartilhavam a mesma sala, que na realidade servia de cozinha e sala de jantar, enquanto os menores, já aconchegados na beliche do único quarto da casa, dormiam tranquilamente após um dia intenso de atividades na creche.
Considerando o fato de ter se visto sozinha na responsabilidade de criar os três filhos, frutos de um casamento que durou apenas o tempo suficiente para encher deles a pequena morada, a jovem senhora, que felizmente havia tido o privilégio de se formar em um curso, à época denominado magistério, tirava as noites para corrigir atividades e elaborar outras tantas para o dia seguinte, a serem aplicadas nas duas turmas que estavam sob seus cuidados, na mesma creche onde permaneciam os seus pequenos o dia todo.
Louças já lavadas, alimento preparado e roupas estendidas para secar, misturavam-se ao sono atrasado, ao cansaço acumulado e ao peso de decisões a serem tomadas, sobretudo em relação ao filho adolescente que, tendo recebido do pai um ‘presente de grego’, em seu último aniversário, andava lhe causando intensa insônia.
Acontece que, ao completar 14 anos, ao final de 2016, seu pai, que se quer havia questionado, em seis anos, sobre calçados ou vestes, entendeu ser importante dar-lhe de presente um pequeno computador e, apesar da precariedade do pão dentro de casa, veio completo e com acesso ilimitado à internet.
E o pior, por incrível que pareça, embora a maioria dos presentes que ganhara já se encontrassem em petição de miséria, com o computador acontecia totalmente o inverso: parecia renovar-se a cada dia inclusive no interesse e dedicação que lhe eram dispensados pelo menino.
Desde então, conforme comentários com colegas durante a soneca de seus alunos, o diálogo tinha sido banido de suas noites uma vez que os pequenos, com apenas 6 e 7 anos, rendidos pelo cansaço, dormiam cedo demais;  as leituras que o mais velho era incentivado a realizar, tinham se tornado cada vez mais precárias e em algum sentido, ultimamente cessado plenamente.
Como é que um pequeno dispositivo consegue apresentar tantas possibilidades de uso próprio ao mesmo tempo em que traz tantas impossibilidades de vida pessoal?
Em seus pensamentos, embora tentasse fixar a necessária atenção às propostas de atividades que desejava apresentar no dia seguinte aos seus pequenos alunos, questionava-se a imaginar um caminho que a levasse diretamente ao cérebro e mais profundamente ao coração do jovem adolescente, mas, segundo imaginou um pouco depois, certamente não havia estudado o suficiente...
E será que há estudos que atendam a esta demanda?
Se pelo menos alguém pudesse ter inventado uma espécie de jogo de acesso à alma, à mente, ao querer da gente...
Tentando imaginar como poderia solucionar o seu caso, tendo o menino à sua frente, sentado na pequena escrivaninha, de costas para ela, chegaram a correr-lhe pela face algumas lágrimas quentes enquanto cuidava para manter o silêncio a fim de que não viesse a desencadear mais uma das muitas discussões que no último ano tinham passado tempo demais a vivenciar.
Na realidade, conforme relato encontrado no início da madrugada, uma vez que, impedida de se desabafar chorando a plenos pulmões, decidiu fazê-lo por meio de palavras como, segundo entendia, assim sempre choram os escritores. Perpetuou assim seu sofrer e suas dores naquele texto que deixaria escrito.
Naqueles momentos surpreendeu-se ainda, cheia de compaixão, pela desdita de uma colega que, embora sem filhos, enfrentava mais ou menos os mesmos problemas, e o pior de tudo, com seu esposo já adulto, desempregado há uns tantos meses (como fosse ele um adolescente que não fora capaz de amadurecer).
Pensou até que a situação de sua amiga parecia ser pior, mas, em meio à sua própria luta encontrava-se tão confusa, dolorida, perdida... voltou a pensar apenas em seu próprio mundo.
Um mundo que de imenso não lhe cabia no coração! Um mundo que, de tão pequeno, apertava-lhe o peito em sua vontade de fugir!
Que vida é essa? Que jogo é esse?
Seria a vida também um jogo?
Onde estariam as regras?
Quem as estaria quebrando tão intensamente de forma a causar tamanha dor e sofrimento às famílias, enfim?
Lembrou-se de ter ouvido alguém dizer-lhe sobre a Bíblia, o livro sagrado dos cristãos, um livro que traria respostas aos seus questionamentos, um livro que certamente lhe apontaria um norte... mas, a alma doía-lhe tanto...
O ser, cansado demais a emudecer lhe o pranto...
Não encontrava forças para procurar o livro que lhe fora dado por uma amiga no natal passado!
Que pena!
Tivesse se levantado para um copo d’água ou para encontrar a Água da vida como a Samaritana pôde encontrar no Poço de Jacó, conforme a história de uma das páginas de sua Bíblia, estaria ainda hoje entre nós e, quem sabe encontraria uma forma diferente de tratar os pequenos a fim de que não viessem a cair na mesma armadilha que sucumbira o mais velho!
Ocorre que, como num desses filmes de ficção, o filho adolescente, fortemente compenetrado em sua missão de, arma em tela, livrar-se do inimigo com tiros rápidos e certeiros, pareceu ter deixado escapar a tal arma de suas mãos e, quis a fatalidade, o tiro voou para fora daquela máquina, estilhaçando-lhe a tela, marcando o rosto do menino a partir dos fragmentos que voaram dali com intensidade...
Fosse só isso, tudo bem, mas, quis a desdita, o tiro veio atingir, atrás dos livros e dos cadernos, em meio ao texto sendo escrito, bem o rumo do coração daquela mãe que chorava por meio de suas mãos!
Mais tarde, ao serem acionadas pelos vizinhos a ambulância e outros aparatos necessários àquela tragédia, o menino foi encontrado chorando sobre o corpo desfalecido de sua mãe e a única expressão que lhe vinha à mente enquanto padecia sua dor era aquela que, vezes sem conta, havia visto escrita na tela de seu computador: “Game over... game over... game over”!

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Contos Urbanos" - Abril de 2018