Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

Amnésia

 

          Uma chuva torrencial caía naquele começo de noite quando saí do escritório onde trabalhava. Abri o guarda-chuva, apesar de saber que de nada adiantava, e me aventurei a atravessar a rua até o estacionamento onde estava o meu carro. Precisava chegar à minha casa, pois André, meu esposo, Aninha e Pedro, meus filhos, já deviam estar esperando para o lanche da tarde.
          Quando eu estava para alcançar a calçada do outro lado, acho que pisei em falso, ou virei o pé, não sei bem. O fato é que caí de maneira largada para trás. Bati com força a cabeça numa pedra. Senti como se um coco verde tivesse sido jogado ao chão fazendo um barulho balofo. Depois de rápida dor alucinante não senti mais nada.
          Acordei um tanto tonta, com fraqueza e mal-estar. Olhei de um lado para outro não conseguindo saber onde estava, que tempo era aquele e quem eu era.
          Tentei me sentar na cama não conseguindo, tão fraca me sentia. Uma moça, enfermeira, se aproximou, deu-me um largo sorriso e disse, não sei se para mim ou para ela mesma: - até que enfim!
          Ajudou-me a sentar e disse que não me movesse que ela logo voltaria. De fato, passaram apenas alguns minutos quando voltou acompanhada de outra enfermeira e de um médico.
          -Como você está se sentindo?
          Respondi um “bem obrigada” com a voz sumida. O médico disse que me acalmasse que logo a família viria me buscar.
          Dentro de mim o vazio inicial se expandiu. Quem era minha família? Como eu fora parar ali? Quem eu era? Comecei a me desesperar. Fiz ao médico várias perguntas aflitas. Notei que os três se entreolhavam e uma das enfermeiras me aplicou uma injeção. Fiquei calma. Logo depois entrou um senhor no quarto acompanhado de duas crianças, um menino e uma menina. Todos estavam sorridentes, me abraçaram e se diziam felizes. Outra vez perguntei:- quem são essas pessoas? O médico saiu do quarto com aquele senhor. Quando voltaram, alguns minutos mais tarde, fui levada por eles, as visitas.
          Depois de uma breve corrida de carro, chegamos num sobrado. -esta é sua casa, disse o homem e as crianças completaram: - bem-vinda mamãe. Meu Deus, eu não conhecia essas pessoas tão gentis e agora essa de mamãe.
          O homem se aproximou de mim e disse que eu havia sido acidentada e era por isso que não me lembrava de nada, mas estava tudo bem. Ele era André, meu esposo, o menino Pedro, a menina Aninha, meus filhos. Fiquei boquiaberta olhando-os e perguntei:- e eu? –Helena, falou.
          Levaram-me para um quarto e aceitei de bom grado a cama que me ofereceram. Fiquei algum tempo deitada com a cabeça doendo de tanto esforço para me lembrar de alguma coisa.
          No outro dia, cumprimentei aquelas pessoas sentindo novamente o carinho com que me tratavam. André falou sobre o acidente, dos longos dias que fiquei no hospital e que logo voltaria a me lembrar de tudo.
          Eu concordava e o vazio em minha cabeça era tão grande, que decidi adotar aquela família para mim desconhecida. Nos dias seguintes aceitei a nova rotina. Conversava muito com a ajudante da casa, na esperança de me lembrar de alguma coisa. Tudo em vão. Os dias passavam sem que nada viesse à tona. Nessas alturas já gostava das pessoas que me cercavam. Aprendi a amá-los, pois via o quanto eles se importavam comigo, incentivando minha memória mostrando fotos, passando vídeos, comentando fatos acontecidos.
          Certo dia, mais ou menos quatro meses depois do acorrido, numa manhã chuvosa, uma névoa despertou  minha mente. Lembrei-me dos meus pais num casarão de uma cidade do interior. Outras lembranças vieram. Minha festa de aniversário de quinze anos, minhas três irmãs, um rapaz dançando a valsa comigo. Agarrei-me àquelas lembranças e mais trade contei a André. Ele riu e me abraçou.
          -Não disse? É passageiro, tudo voltará ao normal.
          Depois de dezenas de dias dessa data, quando Pedro e Aninha voltavam da escola, eu os enxerguei bebês. Embalava Aninha, enquanto Pedro se acercava de nós querendo afagar a irmãzinha. Fiquei muito comovida e abracei aquelas crianças como se fossem mesmo meus filhos. E eram.
          A cada dia um fato novo se revelava. O primeiro aniversário de cada um deles. O primeiro dia que os levei à escola. Depois me vi trabalhando no escritório, o acidente. Enfim o meu casamento. Tudo desfilava diante de mim, agora de maneira definida. Eu estava tão feliz que nem pude esperar pelo André. Liguei para ele toda eufórica chamando-o de esposo, de querido, de tudo.
          Quando ele chegou, acompanhado das crianças, o alarido foi grande. Falávamos ao mesmo tempo, nos abraçamos largados, rimos e choramos. Agradeci sinceramente toda paciência e carinho com que fui tratada, pois sabia que devia a eles o meu restabelecimento.
          Sei que ainda preciso de um pouco mais de tempo para ficar completamente curada, todavia já voltei a trabalhar. Em dias de chuva me acautelo muito. Tenho medo de me arriscar. Quero deixar definitivamente para trás aquele tombo que quase me tirou de órbita.

 

 

 
Poema publicado no livro "Contos Urbanos" - Abril de 2018