Ediloy A. C. Ferraro
São Paulo / SP

 

 

Refém da dor

 

Naquela noite, despida com violência diante a um estranho, temendo por sua vida, tendo as vestes rasgadas e o corpo feito marionete nas mãos calejadas daquele homem, desejada com fúria e desespero, uma ferocidade irracional de uma fera em veste humana, de onde temeu pela sobrevivência.  As escoriações e hematomas foram curadas, amenizadas, mas em seu espírito restaram feridas não apaziguadas, vertendo sangue, a alucinando. Com os olhos aterrados pelo pavor de ser devassada em suas intimidades, invadida pelo membro teso  a lhe vergastar suas entranhas, atordoando-a pelo pavor imposto pelo agressor atrevido e descomunal. Encontrada horas depois, inconsciente, como a um brinquedo abandonado em terreno ermo, machucada e suja, mas respirando. A sua história se dividia entre o antes e o depois daquele ultraje. Pessoa doce, de hábitos saudáveis, simpática com os demais, jamais poderia desconfiar daquela abordagem repentina, valendo-se de que encontrava-se só, à espera do ônibus, na saída do trabalho onde se detivera até pouco mais tarde. Distraíra-se atendendo o celular, confabulando amenidades com uma amiga. A interrupção abrupta da ligação, os sons estranhos registrados pela colega, serviram como um alerta de que algo imprevisível e anormal estava ocorrendo, informando a familiares em sua captura.

Tantas as sessões no analista para retomar sua sanidade depois do tenebroso abuso.  Por que lhe voltava, amiúde, as cenas deploráveis de que fora vítima por aquele celerado?   Parecia-lhe constante e atual as vivências de terror e medo, de angústia e de um sentimento que a assustava e temia confessá-lo a si mesma, quanto mais ao psicanalista. Que sensação era aquela, medonha, descabida, impudica, indecente ,  a assustava e, curiosamente, impiedosamente, a fazia saudosa? Ora, como poderia ter saudades das lembranças da tragédia, daquele ser rude, asqueroso, que a tratou como uma carne abjeta a servir-lhe os bestiais instintos ?  Compreendida em sua situação pelo namorado, sendo infrutíferas as tentativas de continuar a relação, mesmo com a insistência dele. Tivera outros relacionamentos, depois do acontecido, tratada com respeito e amor, mas sentia a presença anônima daquele monstro, como se necessitasse de sua gana a fustigar-lhe o corpo, sem consideração nenhuma pelo que ela pudesse sentir e desejar, apenas a possuindo como um louco. Jamais seria a mesma ?  Procuraria o ofensor em cada relacionamento, sempre insaciada ?   Que penar, os traumas adquiridos, passaram a ser desejados, não poderia assumir a si mesma e a ninguém aquilo, repudiava aquelas sensações, o certo é que o buscava como a uma sombra, necessitava ser possuída com aquela devassidão e volúpia jamais experimentada em seus relacionamentos posteriores, a fazendo insatisfeita e fria.  Carregaria por toda a vida aquela tara insana pelo abuso dementado que a fazia sequiosa? Perdia-se em suas inconfessáveis conjeturas tortuosas. Ele se foi,  um anônimo na escuridão, a deixando estirada, nua, abusada... Marcou-a como um ferro em brasa, vivo na sua lembrança, não exatamente a sua figura, mas os fatos ocorridos e recorrentemente revisitados involuntariamente fazendo-a buscá-lo em outros, inconsciente de si mesma. Esteve em várias delegacias de polícia, oferecendo-se para reconhecimentos de estupradores, embora não se lembrasse com precisão de sua fisionomia, o que, afinal, buscava com aquilo, justiça ?  Não sabia ao certo, talvez quisesse conhecê-lo por alguma razão não confessada a si mesma. Sabia  que não o reconheceria, ainda que por ventura o encontrasse. Tudo aconteceu muito rápido e estava escuro, seu corpo grande sobre si a impediu de encará-lo, possivelmente isso a tivesse salvo de ser morta, a certeza de que não seria reconhecido. O certo é que experimentava um vazio existencial onde se perdera naquele crime hediondo, lesada irremediavelmente em seu íntimo, sequestrada de sua identidade e valores morais, levada de si mesma para sempre. Perdera-se por aquele desatinado, onde temia jamais ser encontrada em seu equilíbrio emocional para seguir vivendo.

- Me bata, por favor !   Aquelas palavras de masoquismo e vulgaridade assustavam os parceiros, que, não acostumados com aquele comportamento, a deixavam. Queria vingar-se em outros a infâmia sofrida, razão de sua indiferença sem qualquer prazer?  E a fazia sofrer pela incompreensão de suas necessidades estigmatizadas em sua alma. Queria ser possuída com a violência experimentada, como se a purgar de algo que a consumia, um fogo sustentado em suas labaredas íntimas e insaciáveis, exigindo de seu par algo além do normal.  Tida como devassa e compulsiva espantava relacionamentos de quem a queria como algo permanente e duradouro, afastando-se de si pretendentes a um relacionamento sério. 

 Em sua solidão, nos seus tormentos pessoais, vagava nas noites, querendo em estranhos as sensações experimentadas, talvez a de ser usada e não amada. Buscava em si mesma algo que não a satisfazia, em seu interior conturbado, sua ânsia pelo imponderável. Acenava nas esquinas por algum estranho em busca de sexo, e ela de um prazer nunca satisfeito, de alguém sem rosto, embrutecido e algoz de seu psiquismo atormentado... 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Contos Urbanos" - Abril de 2018