Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

História de uma grande mulher

Eu sou o seu resultado

Eis a mulher! Eis o seu filho! Eis os sinais que poética e silenciosamente chegavam nas inquietas noites deste que narra por meio de restos e fragmentos de uma história interrompida.
Eis a mulher! Caetana era o seu nome. Era não, é o seu nome, porque Caetana não morre, vive nesta escrita ferida e catastrófica anunciada pelo triste narrador desta história pré-natalina, desta história feita de dias alegres, noites vividas, dias perdidos, noites desencontradas, dias clareados pela luz do sol, noites que traziam à Maria a solidão que morava em seu interior de mulher forte, firme e guerreira.
Eis a mulher! Nascida numa noite clara de um dia incandescente. Alexandrina era a sua mãe que de parto normal a colocara no mundo feito de tantos diferentes mundos. Seu pai Josino Caetano cantava uma canção embalada por um oculto violão feito de cordas que ecoavam um som feito de espinhos, flores e rosas que perfumavam o jardim mais belo do Grande Campo.
Eis a mulher! Caetana, bendita, sofrida, comerciante que enfrentava as feiras do Centro Comercial, a vender seus bibelôs comprado na Louça Moderna, mas também foi aquela que preparava deliciosos bolos e diversos tipos de mingau e vendia na feira antiga do bairro de Nossa Senhora de Fátima.
Acordava bem cedo, e depressa seguia seu destino, pois dela dependia o natal de seus filhos, o casamento de suas filhas, o alimento complementar da fome de uma quantidade de filhos que moravam há muito tempo consigo.
No Centro Comercial ela guardava suas mercadorias em um dos cubículos para no outro dia, arrumá-los sob uma barraca que ficava junto de outras barracas, agitada pelos transeuntes que compravam em sua mão.
Lembro-me, eu narrador de minha própria história, que muitas das vezes eu timidamente a acompanhava, mas eram dois outros irmãos que mais a ajudavam, porque eu sempre estava a estudar, enquanto eles gostavam de acompanhá-la na sua difícil tarefa de mãe trabalhadora, guerreira, sofrida. O salário que ela recebia depois de tantos anos de trabalho não condizia com sua luta. Nem sempre o governo dá ao trabalhador legítimo o valor de seu labor!
Vi minha mãe beber, cair ao chão, levantar-se, erguer-se… Cansada da labuta, voltava para o seu lar exausta, mas não derrotada, pois ela detinha uma força potencial. Eu não compreendia muito bem naquela época. Hoje as recordações me vêm à mente como sombras perdidas, difusas e dissimuladas… Sentia dentro de mim algo que me fazia mal: ver a minha mãe voltar da labuta, no final de semana, em vários domingos dolorosos, nos braços de um de meus irmãos. Eu não compreendia na época a dor de minha querida mãe. Eu não entendia qual o motivo que a levava a beber. Hoje eu sei que ela lutava contra a realidade que ela queria mudar…
Morávamos todos no sobrado onde em festas de São João, minha mãe muito se alegrava. Ela era festeira, alegre e destemida. Quando o sanfoneiro tocava a sanfona, o salão era preenchido pelos convidados que hoje são ossos que não falam…
Tudo passou. Passou o São João, passou o Natal, passou o Ano- novo, passou o tempo, e agora, teclando com os meus frágeis dedos, sigo a orientação de uma mente que enfrentou há dias atrás o falecimento da matriarca. Tudo passou, meu pai, minha mãe, os antigos vizinhos, as festas juninas e natalinas… Passou o tempo da alegria, o tempo da agitada cidade feita de pessoas que se abraçavam. Hoje, resta apenas a violência a caminhar pelas sangrentas ruas, as escolas onde eu trabalho lotadas de pensadores perdidos, de alunos que se eclipsam em sua tentativa de mudar a rasteira vida.
Tudo passou. O tempo também passou. Sonhos eu realizei. E agora, ronda-me a incerteza de que tudo que eu fiz perdeu o seu vigor, pois o narrador sente-se incompleto, cansado da estrada percorrida, esvaziado de sua antiga identidade, de sua antiga vontade de lutar para viver, viver para vencer. O narrador, de repente, descobriu que, com a partida de sua mãe, algo de si também partiu… E ele tenta lutar, resistir ao novo sentimento, cruel e avassalador, que adentra o seu interior, vindo de algum lugar que ele aqui não consegue decifrar nem descrever em forma de palavras.
A história de minha mãe está dentro de mim, e eu terei que dar continuidade à sua vida, à sua história, ao seu caminhar. Assim, eu que era apegado às coisas e vivia a correr da vida, hoje encaro o mundo desabando sobre mim…
Recordações, e nada mais de um dia feito de tantos dias que foram sepultados, trancados num caixão de madeira que a terra se alimentará, como fez na época da partida de meu saudoso pai.
Termino esta história com a vontade de escrever sobre algo que eu tento escrever e não consigo fazê-lo, pois é impossível compreender a morte de nossos entes queridos. Deixo aqui as seguintes frases interpeladas por um “pensamento de desastre”, de precariedade do ser e da dolorosa memória humana que nos impede de compreender certas coisas da vida:
Segue a vida! Que vida?! Se a morte espreita a todos como fera veloz e feroz!
Sentido deteriorado: O sentido da vida entregue ao acaso do vir-a-ser... do devir "aquebrantado", silêncio disperso, vazio perdido.
Ninguém ama ninguém, a não ser o sagrado amor materno...
Meu luto é meu, e de mais ninguém! O resto é sombra, homens e mulheres feitos de falsos discursos e sentidos...
Jamais imaginei que um dia eu pudesse sentir o anti-valor do valor que nós damos à vida, pois ela esconde dentro de si a atroz insana morte.
Graduação, especializações, mestrado, doutorado, pós-doutorado... Tudo junto representa o nada do presente momento...
Depois que perdemos nossos pais, passamos a viver por meio de uma estranha "falta de"...
Quando se perde o verdadeiro amor de nossa vida, nenhum amor será capaz de existir. Apenas sensações perdidas num marasmo doloroso.
Mais uma noite sem a presença da poesia que tanto me inspirava... Agora resta-me apenas palavras ditas por um vazio inabitável...
Aprendi de repente que nada que eu venha fazer terá a força que eu tinha antes... Tudo é neblina, sombra, rastro, fragmento...
O maior dos silêncios é o silêncio noturno, aquele que chega a-temporalmente, temperado por uma ausência de discurso, de palavra...
Tudo se vai, tudo se perde... Não há choro, vela, lamento... Resta-nos apenas saudade... Imensurável e indefinida saudade!
Como será passar o Natal sem ti... Não aprendi. Não me ensinaste a viver sem ti, ó minha maior riqueza! Mãe Maria! Mãe Caetana!
Mãe é mãe e quando ela se vai, leva consigo grande parte de sua vida... E nada será mais como antes...
Sepultando a si a cada dia... Não há outra estrada a seguir...
O grito do povo que se alimenta do jogo é a estúpida falta de consciência. O circo alimenta os palhaços perdidos na noite oprimida.
A ausência tira de si a vontade da potência, e coloca em seu lugar a não-vontade, amarga dor que nos afasta da sombra do outro...
Não se iluda! A morte beira a vida, a vida beira a morte. Uma é a face oculta da outra, e nada mais...
Caminhamos numa ânsia de vida face à morte que nos alcança a cada passo dado... Herança da divina criação.
O ser deterioriza-se a cada passo, pois falta-lhe a compreensão daquilo que não se pode mudar: o outro em sua prepotente máscara.
A cor da razão é a cor da invisibilidade do ser que se enquadra na sua invisível aparência mórbida e silenciosa...
Jamais serei o mesmo depois de sua partida, minha doce e amada mãe! Mas sei que um dia nos veremos novamente...
O amor de mãe é transcendental... Minha mãe amou-me e eu a amei, sendo fiel ao mandamento de Deus: "Honra o teu e a tua mãe..."
E a vida, diga lá, meu irmão, o que é?! Sonho, desvario, luta, perda, luto, pontes feitas, pontes caídas, poesia sem destino...
Tempo que foi, águas que vão... Ventos que passam... Noites que se calam... Horas amargas, distraídas por um silêncio ilocalizável.
Um dia vencendo o outro... Vivendo pelas beiras... pela dor ferida em seu desencanto! Um dia socorrido por um vazio que não passa…
Inesquecível missa: reflexível e divinamente confortante! Uma pregação sobre a verdade de Cristo como salvador da humanidade!
Dor que dói infinitamente dentro de nosso eu... Dor sem cor, estupidamente indescritível...
Amor verdadeiro é o que sentimos por nossa mãe, o resto é produto de nossa imaginação...
Meu maior orgulho, minha maior riqueza é saber que minha mãe habita dentro de mim, pois eu sou o resultado de sua história… e nada mais.

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão" - Edição 2019 - Fevereiro de 2020