Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

O tempo é envolvente

 

         Tem situações tão diferenciadas que não sabemos como agir diante delas. Quando comemorávamos quarenta e quatro anos de casados, meu marido, que nunca foi muito explícito no amor resolveu inusitar: comprou um presente para mim.
Chegou a casa esfuziante com um pacote grande num embrulho lindo muito bem arranjado.
         - Para agradecer a você por ter me aturado durante todos estes anos de vida conjugal. Ele falou com um sorriso tão largo que escondia as orelhas, os braços esticados abandejados pelo pacote de presente oferecendo-o a mim
        Nós somos um casal que sempre viveu o amor com todos os bons e agradáveis momentos, por vezes apimentados por discussões, mal entendidos e outros. Que no fim do dia já estavam esquecidos. Mas confesso que aquela atitude de entrar numa loja sozinho, escolher um presente e trazer para mim, foi aos poucos me amolengando e sem palavras para expressar aquele gesto dele, tão surpreendente.
       Peguei o presente, sentei na poltrona, e ele de pé numa postura física na certeza absoluta de quem tinha acertado na compra, aguardava que eu abrisse o pacote.
        Eu nunca tive a paciência e a delicadeza de desfazer o laço, tirar cuidadosamente os pedaços de durex, dobrar o papel e abrir a caixa. Eu sempre ataquei o presente como se estivesse faminta, rebentando o laço, rasgando o papel e espalhando tudo pelo chão, no afã de descobrir o que tinha de precioso naquele mimo. Mas daquela vez fiz tudo calmamente, tentando imaginar o que tinha passado pela cabeça do meu querido amado ao comprar um regalo para mim. Ele venceu a timidez da escolha, entrar numa loja, e a tomada de decisão pensando em fazer uma surpresa amorosa. Foi demais para mim. Se ele queria eternizar a data e cativar ele conseguiu.
        Ai que medo de não gostar, se for de vestir e não me servir, ser de um manequim muito menor ou muito maior do que o meu. Um objeto de decoração é mais fácil de agraciar, uma joia é sempre uma joia, um perfume é difícil de agradar, um lingerie é uma boa opção. Foi pensando assim que comecei a abrir a tampa da caixa. Resolvi pedir que ele desse umas dicas para eu adivinhasse. Ele respondeu: - não, não tem dica. Abre! Eu sei que você vai gostar.
        Abri. Eu tive vontade de chorar.  - Comprei uma coisa que você não tem igual nem nesta cor. Gostou? Ele perguntou em tom amoroso.
        Fui num triz de tempo conduzida aos meus nove anos de idade. A minha irmã menor e eu tínhamos a obrigação diária de secar e guardar a louça do jantar. Quando a gente terminava a minha mãe dava sempre uma coisinha gostosa para gente: - uma bala, um pedaço de bolo, um chocolate ou no dia seguinte podíamos brincar no quintal com as meninas do vizinho.
         Certo dia quando acabamos a nossa tarefa na cozinha, escutamos um choro na porta da cozinha. Parece que é o choro de um bebê, e o choro ficava cada vez mais forte. Corremos até a minha mãe e falamos assustadas que alguém tinha deixado um bebê na nossa porta. Ela chamou meu pai e vieram os dois seguidos por nós duas.
        Ela ouviu e voltou lá para dentro e meu pai, sentou-se a mesa e chamou nós duas e disse: É um gato e uma gata e ele quer conquistar a gata e conversam assim: - Vou te dar um vestido amareeeeeeelo ( e ele imitava a voz do gato com voz fina de miado esticado)  e a bichana respondia com  voz de gata, bem fina e miado muito esticado: - Eu raaaaaaasgo. Do alto da sabedoria dele ele explicou: - Os gatos miam tão fino que parece o choro de uma criancinha
        A minha irmã perguntou ao meu pai se o namoro deles é sempre assim? É respondeu ele, todos os gatos namoram assim. E eu completei com o  pensamento lógico infantil: - Ela podia aceitar sem rasgar e não usar. E a minha irmã continuou: - Meu pai, por que ele não dá para ela um vestido vermelho, assim ela usa, fica bonita e acaba esta gritaria. Ele ria da nossa curiosidade.
          Quando olhei o presente viajei no tempo. Foi tão sutil aquela viagem
dando um pulo no passado.
          O sentimento foi de gata no cio namorando.
          Eu te dou um vestido amareeeeeeeeelo.   - Eu raaaaaaaasgo!!!

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão" - Edição 2019 - Fevereiro de 2020