Cristina Medeiros da Costa
Ferraz de Vasconcelos / SP

 

Afonso e o negro francês

 

          

Por volta das 16 horas o telefone de Afonso tocava incansável dentro do bolso da calça enquanto regava o jardin. Era Dona Lourdes do 22, falando baixo como se alguém pudesse ouvir o que dizia:
- Afonso, você ainda tem o telefone daquele seu amigo policial?
-Tenho sim, Dona Lourdes, más tem algum problema?
-Não é bem um problema, tem um ‘’negão’’ aí na frente há mais de uma hora, ele olha para o prédio anda de um lado para outro, depois olha de novo, é um sujeito muito estranho, pode estar querendo roubar o prédio, ou o carro em que está encostado, dá uma olhadinha nele e qualquer coisa chame seu amigo policial!
Afonso sentiu um frio ou enjoo estranho, algo difícil de descrever:
- Tudo bem, vou ver o que acontece e informo a senhora.
Foi Tudo o que ele conseguiu dizer e ficou ali num daqueles momentos que em poucos segundos uma vida inteira se passa em sua mente, e logo se lembrou do assalto ocorrido meses antes. Três homens entraram no prédio deram uma coronhada nele e roubaram dois apartamentos antes de a polícia chegar.
Eram violentos, agrediram o casal do 57, e eles eram bem idosos, a polícia chegou e os prendeu, tinham menos de 20 anos, todos brancos...
Um deles era menor, cabelos loiros, olhos claros, corpinho esguio de quem se perdera no vício, roupas sujas porém de marca, embora mais novo parecia liderar os outros, todos meninos de classe média, todos com ficha extensa na polícia.
Afonso voltou à realidade, foi à rua tentar entender o que acontecia.
Realmente um homem demonstrava claro nervosismo à frente do prédio, hora andando, hora encostado num carro importado. Pouco importou a cor de sua pele para Afonso.
- Com licença, o senhor esta esperando alguém?
- Eu? Incomodo aqui? – com sotaque estrangeiro – Minha namorada mora nesse prédio, hoje vim pedi-la em casamento, mas não tenho coragem, estou muito nervoso, o senhor gostaria de ver meus documentos?
- Não, não, imagine, nem tenho autoridade para isso, apenas gostaria de ajudá-lo – Disse Afonso tentando disfarçar uma vergonha e culpa que não lhe cabiam responsabilidade.
- Estou acostumado, já nem me incomodo mais com o preconceito, estão sempre me perguntando o que estou fazendo, se procuro emprego, se quero algo em todos os lugares, acham que não sei que é por causa de minha cor, mas tenho comigo todos meus documentos, não sou bandido ou coisa do tipo, apenas um homem em busca de sua namorada, mas se incomodo vou-me embora e volto quando tiver coragem.
Ele conversou um pouco com o rapaz que em pouco tempo disse que a namorada brasileira retornara ao Brasil, deixando o francês, nos Estados Unidos, ele não queria vir ao Brasil, era arquiteto em boa fase profissional, mas o amor pela moça falou mais alto então ele viera atrás dela resolver tudo e disposto a casar.
Com alguns conselhos tímidos do porteiro, o francês criou coragem e decidiu subir, Afonso interfonou para o 57, a moça permitiu que o francês subisse. O apartamento foi posto à venda depois do assalto, e há poucas semanas foi alugado pela moça recém-chegada do exterior.
Afonso foi ao apartamento de Dona Lourdes e lhe explicou o caso, a velha senhora ficou claramente desconcertada, agradeceu o porteiro e encerrou dizendo - Sabe como é né? Seguro morreu de velho!
Findo o expediente Afonso pegou sua mochila e foi para casa modesta do outro lado da cidade, uma viagem apertada dentro de dois ônibus e uma pequena caminhada até o portão. Não conseguia tirar o acontecido da cabeça, o próprio Afonso era negro, superestimado no prédio, homem de confiança ficava coma a chaves da casa de Dona Lourdes, quando a mesma viajava e ele ficava encarregado de cuidar de suas plantas e gatos, e isso já acontecia ha mais de dez anos, será que ela não percebeu o que fez? Não bastaria ela ter dito que tinha um homem estranho à frente do prédio? Não foi a palavra ‘negro’ que machucou Afonso, mas o medo estampado na voz da velha, como se o ‘’negro’’ pudesse destruir seu mundo.
E mandou ele que tinha a mesma cor de pele, investigar um irmão que ali estava apenas por amor, outro negro de nível intelectual, cultural e financeiro muito maior do que o de muitos moradores daquele prédio. Chegou em casa triste, viu os três filhos pequenos dormindo num mesmo quarto, tão tranquilos, tão seguros em seus sonhos, o que será da vida destes meninos? Pensou ele...
Ao fim do pensamento uma lágrima molhou sua face...

 

 

 
Poema publicado no livro "Data venia!... E tenho dito!" - Contos - Março de 2018