Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

Data venia

 

          

    

Todos sabem que  a expressão “Data Venia” está na categoria Direito. O Zé também sabia quando conheceu Bárbara num baile, na década de setenta.
 Bonito, charmoso, com um forte sotaque americano aportuguesado e estudante de direito do Largo de São Francisco. A mocinha logo caiu de amores por ele. Do namoro ao noivado foi um pulo, mesmo sem conhecer a família do dito, que ele dizia morar em Brasília. O pai foi diplomata por trinta anos na Inglaterra, casado com irlandesa . O rapaz  foi alfabetizado naquele idioma. A noiva, que só tinha o antigo ginásio, se intimidava diante de tanta cultura demonstrada. Ele queria que  ela  falasse bem para não fazer feio em sociedade.  Fazia parte do seu repertório o tal “Data Venia” e toda vez que via um ponto de interrogação na testa das pessoas, não tinha pressa em explicar: é uma expressão latina que significa “dada a licença” ou “dada permissão”, forma educada e polida de iniciar uma frase de discordância sobre o que disse ou escreveu o interlocutor; “ com o devido respeito”, argumentar contra o posicionamento do outro. Papo enfadonho!  Ah! Esqueci de dizer! Ele  não foi sempre Zé. Seu nome era Josef Irving  e Silva, ( por parte de pai).  Todos o chamavam de Josef, portanto.
Como ele se tornou somente “Zé” ? É uma longa história!
 Eu era a melhor amiga de Bárbara, daquelas para as quais se conta tudo. Eu sabia das cantadas e investidas sexuais do sujeito, “a favor ou contra ela”.
Familiarizei-me com seu jeito engraçado de falar, a sua pose de rapaz intelectual  e bem sucedido na vida. Ele passava grande parte do dia na casa da noiva e eu me admirava por ter tanto tempo livre. Consertava o ferro de passar, a máquina de lavar e a televisão. Dizia que o estudo fora do país inclui até costura e, se fosse preciso, confeccionaria suas próprias camisas. Dava palpites nas roupas, nos modelos e até os desenhava para Bárbara. 
Noivaram por quase um ano. Aguardavam a visita dos pais dele para marcarem o casamento e ganharem um apartamento na Vieira Souto como presente.
Essa tal promessa de visita se arrastava, pois o pai, muito ocupado, viajava mais do que nunca.
 Um dia, entrei na Casa Matos, extinta papelaria do Rio. Precisa de alguns livros paradidáticos.  Por trás de uma pilha de livros sobre o balcão, dois funcionários conversavam. Identifiquei a voz, mas não poderia ser o Josef. Não havia sotaque algum. Prestei mais atenção e decidi tirar a dúvida. Bati no vidro do balcão para  me atenderem. Um dos rapazes se moveu e deu de cara comigo. Usava uma camisa azul clara, tipo jaleco, com o nome da papelaria bordado no bolso.
Ele ficou atônito, tentou fingir ser outra pessoa, tratou-me como se não me conhecesse. Para completar, o outro rapaz dirigiu-se a ele  desse modo:
“Zé, vou tomar um comprimido para dor de cabeça e volto já.”
- Não fiz perguntas, paguei meu livro no caixa, enfim, fiz o jogo dele. Eu precisava avisar  minha  amiga que o “Data Venia” era um farsante. Só ia à casa dela de ônibus. Dizia ter pânico de dirigir porque já sofrera um terrível acidente em Londres e mostrava até  uma terrível cicatriz no pé. Só que a irmã de Bárbara viajou
na mesma condução, mas só o viu quando desceu num bairro de subúrbio e entrou numa casa antiga, geminada, bem em frente  a parada do ônibus. Logicamente contou para a irmã. 
Louca de ciúmes, a moça pensou em outra namorada, uma amante, talvez. Não sossegou enquanto não foi lá. Bateu na porta e uma senhora de meia idade, bem humilde, veio atender. Inventou que procurava uma amiga. A senhora disse que não era ali, nem na casa ao lado. Bárbara pediu um copo d`água e a mulher convidou-a a entrar.
Enquanto esperava, olhou com atenção aquela sala, rigorosamente limpa, mas bem pobre. Os rasgos no sofá eram escondidos por uma colcha surrada.
Sobre um móvel, um porta-retratos com a foto de dois rapazes muito parecidos. Um deles, era ele, seu noivo. Logo que a senhora voltou ela perguntou quem eram.
.A senhora respondeu que eram seus filhos e desabafou: - “Esse aqui é trabalhador, ajuda o pai na barraca da feira; esse outro, não tem juízo, não para em emprego algum, tem mania de grandeza e faz pouco da gente. Diz que vai ficar rico e sumir daqui. Sofro muito, moça.”
Minha  amiga ficou arrasada. Tive que fincar mais a faca em seu peito. Ela quis tirar a prova. Foi à papelaria e deu de cara com o infeliz. Aquele era o dia de dizer-lhe que estava grávida. Seu castelo era de areia e se desmanchou em segundos. Nenhum “Data Venia” que viesse dele consertaria tal estrago.
José da Silva  confessou tudo diante da família dela e o pai exigiu casamento assim mesmo, pois uma criança estava a caminho.  Ela o amava e perdoou, casaram e foram morar na casa geminada dos pais dele. Desempregado mais uma vez, ele consertava uma televisão aqui, um liquidificador ali ... e era o Zé para os íntimos.
Não foram felizes para sempre. Tiveram três “datas venias”. Um por ano, sustentados pelos avós. O Zé continuou atacando com nome falso, sotaque de gringo até que morreu quando uma ricaça, ao se ver traída, matou-o com uma facada no coração.
 Os filhos são homens de bem, um deles  juiz, empenhado na lava-jato, que investiga  políticos corruptos. Bárbara casou com um bom homem e teve mais dois filhos.
 Hoje é uma avó feliz e realizada. Um dia, um neto, de oito anos, em suas falas usou “data venia”. Nunca viram a avó enfurecida daquele jeito:
- “Nunca mais fale isso, menino!”
 As crianças ficaram pensando que  a tal expressão era palavrão.

 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Data venia!... E tenho dito!" - Contos - Março de 2018